quarta-feira, dezembro 11, 2013

Inestimável


Francamente, o teu não tem bom aspecto.
Ficaste parada no tempo, como num grande engarrafamento,
os olhos lastimosos.
Mas os demais passam a teu lado,
run run, pela tua direita e pela tua esquerda,
adeus, adeus, e logo ficas entregue a ti,
com os teus pulsos abertos.
                                                Menina feia, o que fizeste,
recolhe os pedaços.

Se bem que talvez fosse justamente isso
o que sempre quiseste:
a estranha perfeição da quietude.
Tu, toda branca, um feto distraído,
medida tibiamente no silêncio,
depois de nos deixares como herança o pesar
e os remorsos.
Deve-se morrer com algum objectivo
mas alegro-me que não o tenhas feito.

Quanto ao resto, suponho que te lembres
de como celebrávamos aqueles aniversários
da tua não morte: deitando-nos juntos
apenas para dormir, como irmãozinhos dickensianos,
o meu peito contra as tuas costas: dois parêntesis.

O sexo vinha então, com alguma sorte.

Se me perguntares, julgo que o teu erro
foi pensar que viver era presente
condescendente que tu nos davas,
um sacrifício teu: esse mar calmo,
a brancura perfeita e o feto e tudo o resto,
a troco do sossego de quantos gostamos de ti.
Mas pagarmos o preço do teu fantasma ia-nos saindo,
com o passar do tempo, muito caro.
Perdoa o mau jeito: metes medo.

A tua sede é da vida dos outros.
Agarras-te ao que não pode tocar-se, cheirar-se, ser vendido.
Que fazem com o calor
pequena lambidela de olhos ávidos
e o coração tão frio?

Ainda assim, há algo de bom em tudo isto:
enfim alguém que está em dívida para comigo.
Eu quis-te, ao meu jeito, e tu a mim não. E jamais
te disse alguma coisa que não
a verdade.

Guardei para mim um pouco de calor
no meio deste frio.
Agora o tempo passou e eu sou outro.
Pela tua dívida, descansa: não te cobro.


- José Luis Piquero
in El fin de semana perdido, DVD

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