quinta-feira, dezembro 12, 2013

Anti-Orfeu


Passa o ciclista tamborilando a pianola da chuva. A minha máquina começa a escrever sozinha e os telhados tartamudeiam telegrafias. Alongamos sobre a harpa os dedos do nosso olhar. A luz passa incognitamente, e nem dentro da sala conseguimos levantar-lhe o véu. Contra a janela, as nossas mãos gotejam em sangue. A corda da minha voz quebrou-se; mas a minha bem que o mereceu: queria tocar marchas triunfais, embora soubesse que nesta casa não se dissimulam desordens. Mas a tua voz também já não se ouve, Orfeu, é já só convulsão do peito.
Ao céu gritaremos que, em bom juízo, no seu azul começa toda a limpeza: que se escume, então, a espuma e se sequem os olhos. Orfeu está encarcerado na torre, no lado oposto do poço, chorando o seu castelhano pigarreado.
Homens como nós estão enamorados da noite; fecham os guarda-chuvas para levarem consigo, sobre as suas cabeças, um troço de céu nocturno. Lineu que era senão um lince esquecido sobre as árvores? Fechamos os olhos para nos reconhecermos. Mas doem-nos recordações imaginadas. Uma forma de palavra começa a definir-se. O ar torna-se cada vez mais e mais fino, comovido, por entrar pela fechadura da porta do quarto ao lado, onde alguém chora. Aprende novas formas de consolo. Então eu, para não chamar por Verlaine, chamo por ti, Orfeu. Um morcego rompe a nascente do dia, adejando ao som da tua tosse.

- Gilberto Owen
retirado daqui 

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