Um palito para Alfred Jarry
Esse pão com fome de polacos e de
bicicleta com a poesia com as tripas de fora atravessando incólume terra
de Ubus, o onanista voador de diamante em visita ao Amor, Alfred Jarry
de seu nome incandescente, que eu conheci estava no meu primeiro solo de
ranger de dentes e ele atirava ao alvo — ó cabecinhas,
barrigas-de-petróleo, patriotas encuecados de ideal borrado,
crocoloditas de pança encortiçada, mandibulantes de carniça operária,
grandes escritores de tinta da china maricas — , esse Pão que todos os
dias nos rebenta na boca logo de manhã, e depois à mesa, e na cama à
noite, e sempre, enquanto este tempo de Ubus não for empurrado para o
alçapão — «nobres para o alçapão, financeiros para o alçapão —, Alfred
Jarry de seu nome de letras crepitando no organismo da fêmea do
super-macho e escrito no espelho de cada um, esse Pão com vidro moído
por dentro para dar aos generais, com fumo para entrar nos olhos dos
cães de guarda da paisagem, Alfred Jarry de seu nome cortante, ora vejamos:
Este poeta e a vida, paixão e morte da sua vida não podem
sofrer homenagens para além do palito, que é, supõe-se, o que todos aqui
vêm trazer, cada um à sua maneira. Porque, para além do palito, neste
caso, o exercício de cadaverização estaria demasiado à vista. Desviar as
balas alegremente em direcção ao alvo ainda vivo seria o mesmo que
desarmar o franco-atirador que foi Alfred Jarry — e ficarmos desarmados.
Confesso não estar muito à vontade com, na mão, este palito que me
parece uma flor. Rir-se a barriga do rei dos polacos, por minha causa,
das pistolas de Jarry, não desejaria eu nunca. O humor, que se quer
negro, devorante e criador, há-de em português cintilar mesmo no
cadafalso. Vejo uma mancha de sangue no local onde dois amantes se
demoraram e oiço-os rir ao longe. Irei atrás deles.
Aqui está: um
poeta corre sempre o risco de ser assassinado enquanto viver —
sobreviver — rodeado de polacos. Abrir brechas, clareiras num exército
permanente às ordens de Ubu equivale a seguir, se não é amante, o rastro
dos amantes.
O anti-terrorismo de Alfred Jarry, que não é para
imitações, também não é para ser servido com os talheres com que
habitualmente a literatura trata os seus alimentos. E ao pedir, na hora
em que a fome o ataca mortalmente, apenas um palito, ao disparar assim
afasta desde logo para bem longe os caixeiros das artes funerárias.
A
vibrante canção de recusa e de degolação que é a sua vida e a sua obra
mais uma vez coloca a poesia nas primeiras linhas de fogo, donde em vão a
têm querido tirar. Neste século por acabar, por estripar, por
incendiar, o grito de morra o Rei Ubu é a única palavra de ordem.
E cabe aos poetas tornar esse grito bem audível.
- António José Forte
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