domingo, agosto 04, 2013


BRINCAR AOS POBREZINHOS

 

Poucas vezes assistimos à quebra de uma regra que nos garante o seguinte: um jornalista que faz uma reportagem sobre os pobres avança com a presunção de sociólogo; um jornalista que relata, enquanto repórter, a vida dos ricos presume-se um etólogo. Porque é que uns são objecto de sociologia espontânea (devedora de uma sociologia da pobreza, que tem o seu momento fundador num estudo de Georg Simmel, de 1907) e os outros suscitam uma etologia, como se fossem espécies zoológicas de um parque natural? Esta questão encontra, numa reportagem sobre os ricos da Comporta, publicada pela Revista do Expresso da semana passada, integral razão para ser formulada deste modo. Encontramos aí, elevados à potência grotesca, o jornalista como caricatura do etólogo e os seus objectos de reportagem como caricaturas das espécies animais que, no seu habitat temporário e de refúgio, se entregam ao exuberante “potlach” (inevitável, aqui, o conceito de Marcel Mauss) que consiste na teatralização da vida. E esse investimento teatral é inspirado numa rivalidade mimética: os ricos sentem-se na Comporta como se estivessem no território dos arquétipos e, por isso, um exemplar feminino dotado de linguagem e com o nome de Espírito Santo diz ao jornalista que viver naquele parque natural “é como brincar aos pobrezinhos”. O “pobrezinho”, como sabemos, é o arquétipo do pobre. Este não é senão uma manifestação social, uma forma histórica degradada, do pobrezinho vernacular. E assim se consuma um acordo total, a harmonia universalis que este tipo de reportagens tem por fim restabelecer: o jornalista-etólogo procede à objectivação do ethos dos ricos que, por sua vez, objectivam, sub specie theatralis, o ethos idealizado dos pobres, isto é, dos pobrezinhos. A Comporta é uma verdadeira mónada leibniziana e, enquanto parque natural de vida rica que imita a potência da pobreza, um fenómeno antropológico total. A única coisa que vem perturbar esta harmonia pré-estabelecida é o nosso olhar viciado pelo demónio da reversibilidade, esse olhar que nos leva a concluir que não é o cão que foi condicionado, foi ele que condicionou o seu dono e sabe que, salivando, este lhe oferecerá comida. Ora, por esse mesmo fenómeno da significação reversível, nada garante que estes ricos que dizem brincar aos pobrezinhos no Verão da Comporta não sejam pobrezinhos que brincam aos ricos durante as outras estações. É a eterna questão do teatro barroco: se a vida é um teatro, o teatro é a vida. Mas a reversibilidade não acaba aqui: o etólogo-repórter julga cumprir a sua missão de dar a ver. Mas este tipo de reportagens é inevitavelmente auto-referencial e o ethos do etólogo e de tudo aquilo que ele representa acaba por se tornar tão visível e tão obsceno como o “brincar aos pobrezinhos”: ele partiu com a missão da objectivação etológica (que é, em suma, a tarefa que estas reportagens têm o objectivo de cumprir) e é o seu trabalho que surge, aos nossos olhos, etologicamente objectivado. Assim, por via da reversibilidade, o parque natural e temático da Comporta, observado na viagem exploratória de um etólogo da estação científico-laboratorial de Paço d’Arcos, surge desvelado aos olhos do leitor em posição invertida: no rico laboratório da Comporta foi acolhido para estudo um exemplar do parque natural de Paço d’Arcos. Como toda a gente sabe, a ciência, ao contrário do jornalismo, não é coisa de pobres.


- António Guerreiro
in Ípsilon (2.08.2013)

1 comentário:

Antônio LaCarne disse...

absolutamente incrível.