domingo, agosto 04, 2013

A BOA DOSE DE CARISMA
 
 
Quando tentamos perceber os tropismos e a herança do nosso tempo, vamos quase sempre dar a um punhado de filósofos, sociólogos e outras espécies impuras difíceis de classificar que, nas primeiras décadas do século XX, parecem ter esboçado o mapa pelo qual nos orientamos ainda hoje e definido uma sensibilidade epocal que continua a ser o nosso horizonte. Uma dessas figuras que se erguem, indeclináveis, diante de nós, é Max Weber. E a sua sociologia do carisma, assim como a sua reflexão sobre a política como profissão (ou vocação, Beruf) são uma paragem obrigatória para, entre outras coisas, percebermos o que está em causa quando ouvimos dizer que faltam, em Portugal e na Europa, “grandes homens”, políticos com carisma. Esta reclamação recorrente é altamente perigosa: o século XX foi o século das patologias do carisma, tanto o nazismo como o estalinismo foram formas extremas de dominação carismática. A noção de “carisma”, aplicada ao campo político, corresponde à transformação, operada por Max Weber, de um conceito teológico em intrumento de análise sociológica. Mesmo sem ter assistido aos fenómenos extremos e patológicos do século, Weber mostrou-se extremamente consciente de como é difícil o equilíbrio entre a necessidade de carisma e a democracia, de como é difícil promover uma ideia democrática de carisma (e ele mostra como as democracias modernas não erradicaram de modo nenhum essa dimensão da vida social e política), que a torne um factor de legitimação do poder e uma fonte de autoridade, e não um instrumento irracional de usurpação das massas por parte de um “chefe”. Daí a denúncia que ele faz do culto dos “grandes homens” e a repugnância que sentiu pelo círculo que tinha no seu centro o poeta Stefan George, que representou o chefe carismático por excelência, de onde saiu o misticismo de uma “Alemanha secreta”. Nessa conferência de 1919 sobre a política como profissão, Weber formulava uma forte apreensão relativamente à emergência dos “políticos de profissão sem vocação”, isto é, que não respondem a nenhum apelo (Weber di-lo num jogo de palavras intraduzível: Berufspolitiker ohne Beruf). O sociólogo alemão indicava assim o perigo a cujas consequências fomos entretanto expostos de maneira extrema e que levam ao lamento recorrente de que os políticos não têm carisma: a profissionalização da política traz consigo uma predominância de indivíduos dos aparelhos e de funcionários da política em relação aos que são movidos pela “vocação”, determinados pelas convicções. Ele ecoava assim uma proposição de Hegel: “O génio político consiste na identificação do indivíduo com um princípio”. Uma vida política desprovida da dimensão de convicção, diz Weber noutro momento, torna-se necessariamente um campo de manobras dos aparelhos políticos, em que o poder e a gestão partilham, em estreita cumplicidade e com enorme sabedoria táctica, os respectivos interesses. Mas a lição weberiana, que se projecta inteiramente na nossa actualidade, é também esta: o carisma é necessário na medida em que corresponde a uma das forças que funcionam como oposição à “lei sem lei” da dominação económica pura. Contra um axioma liberal que conheceu e conhece versões radicais, Weber defendeu que a ideia de cumplicidade entre capitalismo e democracia é uma infantilidade ideológica, o que o levou a esta pergunta inquietante sobre a qual devíamos estar todos a meditar: “Como é que a democracia e a liberdade podem ser mantidas a longo prazo sob as condições do capitalismo avançado?”.    

- António Guerreiro
in Ípsilon (26.07.2013)

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