quarta-feira, abril 03, 2013

Arquitecto

para o João

Digamos que amanhece, que acordas
desses teus pesadelos cheios de talento
e ao redor da cama
dás com um bando de pássaros mortos
(tão mortos, tão imóveis, tão caídos...).
Os gatos também encolhem os ombros.
A casa é um eco que não acaba. Surda,
tem uma memória espantosa, mas já nada
de novo te aceita. São tantos anos,
gritos e mordeduras, fios de
aranha e baba cristalina
, o reflexo
na bacia entupida, as flechas da infância e
pedras tão fundas. Um relógio caído
a um canto, devorado por formigas,
e as horas fugidas, desmesuradas.
Esse deserto de porcelana, flores imóveis,
tudo petrificado num espelho morto
que dessangra reflexos antigos.
Uma nuvem cobre os espaços a que
a dor se habituou. Lá fora, o vento
já depôs as armas, resta a chuva
e o seu coruscar. O silêncio bebe-a.

Pisando docemente entre os charcos,
segues distraído e das partes infinitas
para os tugúrios onde te enfias
é um tiro. Largas uns trocos sobre esse
peito de vidro e tomas lugar no congresso
de velhos orfeus. Dulcíssima ladainha
em que se fiam encantamentos, as imagens
de outra razão. Sacudindo da roupa
o pó irisado da fábula que nos prende

a estes lugares, cada duas horas alguém
monta o seu burro zonzo e dá
lugar a outro corpo, a outra história.

A esta hora da tarde, ainda no turno
da cerveja, tudo fica tão perto.
E na volta cortas a flor da névoa
que levas para deixar sobre o vestido dela.
Um sol frio bebe leite nos escombros
da velha casa. Com os dedos lês os detalhes
de que a luz cuidou, o gesto sombrio
da sua glória consumida. Outra flecha
perdida entre a tua fragilidade
e o ruído de uma máquina de coser
aqui ao lado, há muito tempo. Absurdo.
Irreal e absurdo.

Digamos que anoitece, e no escuro
a tua lâmpada canta só,
põe ordem ao enredo e o seu círculo
alarga, sussurrante, embriagando
os mosquitos. A máquina em que
te bates, como uma prece
depois de perdida a fé, soa bem alto.
Sobrepões-te ao rumor irado da casa,
e lanças-lhe um urro que põe em sentido
toda a sua arquitectura.



1 comentário:

io disse...

O meu inexistente reino por um urro desses. Espero que não te importes, vou levar este belíssimo poema para o meu A&OD.