Texto de Pedro Rosa Mendes
O ditador Oliveira Salazar governou Portugal durante quase meio século, de 1928 a 1968 por sua mão ou inspiração, depois na modalidade de missa-de-corpo-presente através de Marcelo Caetano. Salazar, espécie de viúvo celibatário, amante apenas do seu próprio messianismo, moldou o país no fundamentalismo beato de uma opus grei a que ele chamou de Estado Novo. Salazar, com doses iguais de misticismo e de cinismo, tinha uma tripla fé: 1. em si próprio como Führer infalível; 2. em Deus como leal confessor do poder; 3. e na miséria como ermida natural da virtude. Miséria económica, miséria cultural, miséria moral. Miséria-Pátria. Sem força para ser grande, o Portugal de Salazar alimentou o orgulho da sua solidão e o culto da sua pequenez. «Um povo que tenha a coragem de ser pobre é um povo invencível», confessou um dia o ditador-beato ao seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira. Esta frase encerra todo o seu credo e toda a nossa desgraça, incluindo a que vivemos hoje. Cinquenta anos após a saída de Salazar e quatro décadas após a Revolução de Abril de 1974, o Portugal democrático, vassalo de uma troika de contabilistas e amestrado por uma trupe de domadores de circo, realiza finalmente a vingança póstuma do ditador. O país, sujeito desde 2011 a uma intervenção financeira internacional, está à mercê de um grupo que acredita que Portugal tem tudo a ganhar em ficar mais pobre. Pobre «em termos relativos, em termos absolutos até», conforme explicou o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho. O tempo é de contrarrevolução e de sonhos regressivos.
O dogma de quem governa hoje em Lisboa é que não há alternativa ao regime de indigência colectiva assinado com a troika. O Orçamento de Estado português para 2013 é um marco histórico. Põe fim a uma época ao rasgar o contrato com uma sociedade que, após a Revolução dos Cravos, sonhou ser outra coisa do que aquilo que hoje, sem dó, a «Europa» lhe diz que é: já não o novo-rico entre os pobres mas o velho-pobre entre os ricos. O Orçamento, corolário de uma inclemência ideológica lancinante, anuncia uma era de trevas. É o réquiem pela III República. É um Orçamento que concretiza o desmantelamento acelerado do Estado social construído em e pela democracia. Isto, em si, não é apenas uma tragédia portuguesa mas, em primeiro lugar, um ruidoso fracasso europeu. Com efeito, destrói-se de forma duradoura, num curto espaço de tempo e com a legitimação da «Europa», o que foi construído em mais de 30 anos com a ajuda da mesma «Europa». Não é, porém, nenhum mistério nem nenhuma novidade. Na construção como na demolição, os maiores sonhos e as maiores loucuras em Portugal têm e tiveram as oportunidades e os limites permitidos pelos interesses dos nossos fiéis amigos estrangeiros. Foi assim que tivemos o nosso império e que, acessoriamente, mantivemos o holograma a que chamamos a independência nacional.
O resto, ao nível interno, são as fraquezas seculares de Portugal e as continuidades de tempo longo, que regressam na actual legislatura com um vigor descaradamente revanchista, após um alegre e espalhafatoso passeio pós-revolucionário de Portugal pela «Europa». Façamos o balanço de quatro décadas de democracia e «convergência». O Estado cristalizou numa estrutura oligárquica, plataforma ao serviço dos interesses de uma classe política parasitária e das suas clientelas. O país, que em bom rigor não pode cumprir hoje várias das suas próprias obrigações constitucionais de soberania, não é viável sem capital externo. Tão-pouco é viável sem essa jóia do atavismo nacional português chamada Angola. A nação portuguesa confronta os seus mitos com a realidade da sua irrelevância periférica e recicla na «lusofonia» o discurso do excepcionalismo português cozinhado a partir do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre. A pobreza, enfim, volta a ser a condição normal do cidadão português médio. Resignação, rancor e inveja social — marcas ancestrais de uma população que poucas vezes teve coragem de ser povo para mudar o seu destino — formam o código operativo de sobrevivência individual. De tudo isto, quem não gosta ou não aguenta, emigra, aliás com a bênção indecorosa das autoridades, que chamam «oportunidades» àquilo que é uma soma de tragédias e dramas individuais. Esta descrição, que podia ser a do Portugal de 1960, corresponde, no essencial, ao Portugal de 2012. Coloquemos apenas mais uns milhares de quilómetros de autoestradas e outras infraestruturas, construídas, a propósito, «sem custos para o utilizador» (deram-lhes esse nome delirante), que agora engrossam o pecado mortal do défice criado pelo investimento público. «Se calhar, há coisas que não deveríamos ter querido», dizia recentemente um ex-ministro e gestor de topo, com o conforto e o despudor de quem gozou não há muito tempo um «prémio» milionário ao sair de funções. «Talvez tenhamos exagerado nas autoestradas.» Não lhe ocorre perguntar, a ele e aos que na «Europa» partilham esse discurso, quem é que ganhou com essa gula do «querer coisas» e a quem serviu o «exagero» desse escândalo que constituem as Parcerias Público-Privadas (PPP).
Coloquemos, é claro, neste balanço de regime essa conquista maior do Portugal democrático que é o progresso notável dos índices de educação. Mas isso é o que tem um sabor mais amargo: a geração com mais elevada preparação académica da História portuguesa não tem oportunidades no seu país e vai rentabilizar, a favor de outras economias, o investimento consistente de Portugal em criação de massa crítica. Paroxismo: hoje, os candidatos a um emprego escondem as suas habilitações académicas para aumentar as suas hipóteses de conseguir um trabalho (mal pago). Um curso universitário ou mesmo pré-universitário é agora considerado «muito pesado» para as agências de emprego. Ao mesmo tempo, o país não venceu os fantasmas do seu provincianismo rural nem abandonou o quadro psicanalítico do Estado Novo. Nesta sociedade, que nunca conheceu uma cultura de exigência nem de reconhecimento do mérito, os «doutores» são reis em terra de cegos. O exemplo mais caricatural é o ministro Miguel Relvas, produto acabado de uma sociedade de oportunistas. Representa um insulto à cidadania e à ética mas é sancionado por um sistema que não mudou: é feito de compadrio, de corrupção de alto nível, de tráfico de influências e, sempre que é preciso, de bullying político e pressão directa. O prestígio social do parecer é em Portugal maior do que o prestígio social do ser. Isso não nasceu agora, é um traço do nosso subdesenvolvimento. Na última década, este fundo cultural teve a sua expressão institucional no programa Novas Oportunidades de incentivo à requalificação profissional. Com a ressalva de casos de bondade, abnegação e génio que sempre convém considerar, o programa permitiu a milhares de portugueses certificar conhecimentos que, em substância, nunca adquiriram, falseando as regras de competição no mercado de trabalho. A «crise» actual é também o ponto de chegada de uma geração de portugueses amamentados numa modernidade «chave-na-mão» por líderes que, em troca de uma cultura do conforto e do facilitismo, alimentada por um nível generoso de consumo, concedeu aos nossos dirigentes o direito à infantilização do eleitorado. Na derrocada portuguesa, não haveria Passos Coelho sem José Sócrates. A verdade, para falar mais simples, é que o país de Salazar não morreu com ele. O ditador, que era profundamente arrogante sob a sua diáfana modéstia de sacristão, tinha afinal razão: «Só morre quem quer.»
Portugal está mergulhado numa crise profunda, mas o que vem a significar esta «crise»? O meu primeiro indicador macro-económico sobre a situação actual é puramente emocional: não tenho, hoje, nenhum amigo feliz em Portugal. Nenhum. Vários estão no desemprego, todos estão em angústia, muitos entraram em profundo desespero. Outros saíram — como eu. O panorama da comunicação social é tão inquietante como o de outros sectores, com uma agravante: às fragilidades económicas veio somar-se um ambiente de ataque silencioso, mas persistente, a algumas liberdades fundamentais. Em Portugal há liberdade, sim, mas também há medo e o medo é o cancro de qualquer democracia.
Despojados do crédito instantâneo, confrontados com a fragilidade da economia real do «aluno-modelo da Europa», os lusitanos descobrem, como diz um amigo meu da banca de investimento, «que um euro português não valia o mesmo que um euro alemão». «The revolution will not be televised», cantava Gil Scott-Heron. Em Portugal, pelo contrário, é em directo que se assiste à crónica do fim da nossa classe média. O armagedão chegou sob a forma de um «enorme aumento de impostos» revelado à nação pela voz peculiar do ministro das Finanças, um Torquemada dos ficheiros Excel, perito em declarações que nos deixam incertos se o que diz é fruto de uma «enorme» estupidez ou de uma «enorme» insolência. A mesma gente que propõe e discute retirar 10 ou 20 euros a pensionistas e desempregados que vivem com 300 euros mensais concede, alegremente, perdões fiscais de milhares de milhões de euros a uma lista reduzida de «sociedades» e «consultoras» sediadas offshore e cujos nomes ninguém identifica com produção objectiva de riqueza. Hoje, é recorrente ouvir um leque alargado de pessoas, das classes «baixas» às «médias-altas», evocar a hipótese de emigrar, seguindo na peugada dos 120 mil portugueses que, só em 2011, abandonaram o país. Quem tem filhos não vê grande futuro para eles, não na sua terra. Instala-se, tragicamente, a convicção de que «estudar não serve para nada» num país com um lastro pesadíssimo de iliteracia e analfabetismo funcional. Estudar para quê, se hoje, em Portugal, um serralheiro mecânico é mais bem remunerado do que um engenheiro? Há professores nas universidades portuguesas a receber cinco euros por hora de aula. Melhor sair, então. A hemorragia está em curso e já não é possível negar que existe, como até há pouco tempo. Quatrocentos euros, o nível do «rendimento mínimo», são actualmente um ordenado de privilégio para jovens licenciados em Portugal. E pouco acima — convém não perder a noção das realidades — da tabela com que o coronel Khadafi apascentava o novo funcionalismo público da sua Líbia de rosto humano, nas vésperas da Primavera Árabe. Quero dizer: Portugal aproxima-se a passos de gigante de alguns dos indicadores de subdesenvolvimento e das «linhas de fragilidade» que identificam o mundo pobre e a geografia dos Estados «falhados». Não apenas nos níveis de pobreza mas em vários outros sinais inequívocos de disfuncionalidade: o desordenamento do território, a falência de funções de serviço público, a ilegitimidade e isolamento das elites, a chocante desigualdade social entre uma minoria de muito ricos e uma maioria de pobres, a lumpenização das periferias, o aumento da economia paralela e, claro, os níveis pornográficos do desemprego jovem. Se, em vez deste copo «meio vazio», relativizarmos as coisas pela perspectiva do copo «meio cheio», é forçoso reconhecer na mesma que Portugal, em clara desconvergência com a «Europa», deriva rapidamente para um patamar de felicidade pragmática do melhor Magrebe. Digamos, uma espécie de Catalunha de Marrocos — sem ofensa para ninguém. Marrocos é, a propósito, motivo de vergonha comparativa para Portugal. Embriagado pelos fundos de «convergência» e com a boca na torneira de dinheiro da CEE/UE, Portugal desbaratou em despesas correntes e sem avaliação correta do retorno do investimento uma parte substancial do que a «Europa» concedeu a título de fundos estruturais. Sem a chuva de fundos europeus, ao contrário, Marrocos teve que ser mais astuto e proactivo, desenhando uma estratégia concreta de desenvolvimento nacional, de atracção de massa crítica da diáspora e de atracção de investimento estrangeiro, servida por elites com uma formação que as elites portuguesas não tinham — nem tiveram — nos anos 80 e 90. «Marrocos hoje é Portugal de há 20 anos, mas com gente mais bem preparada», dizia-me um gestor com grande experiência internacional. As boas ideias produzem bons resultados. Casablanca, apenas para ilustração, é hoje uma cidade mais competitiva e central do que Lisboa como interface de negócios da «Europa» com o Sul emergente. Apesar do discurso vazio, para consumo interno, de Portugal como «porta para África» (e, mais ridículo ainda, «ponte da Europa com o Brasil», que obviamente não precisa de ponte para lado nenhum), organizar uma simples reunião de negócios com empresários africanos em Lisboa pode ser um pesadelo. Antes de mais, por causa de uma coisa chamada Sistema Schengen... A outro nível, compare-se as rotas africanas da TAP com as da Royal Air Maroc e percebe-se o acanhamento funcional de muitas empresas estratégicas portuguesas. Portugal, perdido o império, escolheu fechar-se ao Sul quando achou que a «Europa» era o seu único lugar conveniente. Aderiu à desconfiança e ao pudor dos ricos com os continentes «difíceis» e ergueu barreiras de todo o género (consulares, políticas, aduaneiras), insultando o seu passado e as suas obrigações morais a bem de uma distância higiénica com o mundo «pobre». Um mundo para onde Portugal, em actos e discursos, olhava com o mesmo desdém e sobranceria, e com indisfarçável chauvinismo, com que a «Europa» olha hoje para nós.
Eis-nos, pois, chegados a uma rutura geográfica e não já apenas económica: Portugal já não é o Sul emergente e viçoso da «Europa» unida, bom aluno aplaudido no clube dos «grandes». É irreal recordar que, há apenas dois anos (!), o então primeiro-ministro português, o socialista Sócrates — «mon ami jôzê» —, era o convidado de honra de Nicolas Sarkozy num simpósio sobre «Novo Mundo, Novo Capitalismo» em Paris... Portugal é hoje a melancólica finisterra de um novo Mezzogiorno mediterrânico, cuja existência não aflige especialmente os centros de decisão europeus. Entregues agora a um «Sul» que não é bem o que a «Europa» entende por Côte d´Azur, os Portugueses assistem ao regresso vingativo da sua História — à mercê de novos poderes e esferas de influência que concretizam uma versão ácida do regresso das caravelas. Uma multidão de desocupados da bolha da construção e dos sectores de mão de obra barata em Portugal ruma a Angola (e rumaria à Líbia se a revolução não tivesse adiado o boom de construção pago pelo dinheiro do petróleo, após o fim do embargo ao regime do coronel). Sobre Angola, antiga «jóia da coroa» portuguesa, diz a propaganda dos dois países que é uma terra de «oportunidades». É verdade, para quem não tiver escrúpulos.
O que não se diz nos media de Luanda nem de Lisboa, nem da «Europa», é que hoje não há dinheiro limpo em Angola e que todo o «investimento» é, direta ou indiretamente, uma lavagem. Citando o corajoso rapper angolano MCK, no fantástico poema que é o tema «No País do Pai Banana», eles «fizeram da miséria um negócio rentável». Angola é hoje um circo máximo de nova exploração colonial, num projeto de capitalismo selvagem gerido por um regime de origem e de matriz estalinista. A exploração, contudo, inverteu-se neste binómio luso-tropical. Os filhos e netos dos colonos portugueses são hoje — nos estaleiros, nas pedreiras, na construção civil — os semiescravos dos descendentes dos antigos «indígenas» e «assimilados».
Mas Angola não é apenas o destino da nossa mão de obra barata. Depois de uma excursão de 40 anos à «Europa», o Portugal democrático está hoje exactamente onde estava o Portugal da perestroika marcelista. Portugal, como escrevi antes, não é viável sem Angola, o que constitui, como nos anos 70, uma questão de soberania — não já deles, mas nossa. De Luanda chega, nos últimos anos, o fluxo de capital e de investimento — as tais «oportunidades» — que mantém Portugal à tona dos níveis mínimos da «Europa», evitando a honestidade do naufrágio, a troco do controlo crescente por interesses angolanos de posições vitais na banca, na energia, na distribuição e, hélas!, na comunicação social. O fracasso mútuo de Portugal na «Europa» e da «Europa» em Portugal não se mede apenas, nem sobretudo, pela falta de convergência económico-social, mas também pela falta de convergência moral e ética na prática política e na cultura cívica. A «Europa» admite e acha normal, na sua cintura Sul, padrões de corrupção política, de má governação e de práticas antidemocráticas quotidianas que jamais passariam incólumes nos países do Norte - ou até do Leste, para esse efeito. Este é um tipo de condescendência mal disfarçada de quem, nos anos 80 e 90, não soube, porque não quis, em Bruxelas, Paris ou Bona, exercer o devido leverage sobre classes políticas emergentes que alimentaram e construíram as suas clientelas distribuindo e desbaratando os «fundos de coesão», a bem de um modelo de desenvolvimento que nunca se desviou do que era conveniente, nessa época, para os «grandes» do «projecto europeu».
Não se chega sozinho a um buraco como aquele em que Portugal se encontra. Tivemos ajuda activa e eficaz. A ajuda ao encravamento antecedeu a ajuda ao desenvolvimento. Portugal não chegou à «Europa» há mais tempo, quando devia e podia, porque a «Europa» e a «América», leia-se, as democracias ocidentais, não acharam finalmente que valesse a pena forçar demasiado a mão a Salazar (e a Franco) após 1945. Os grandes faróis do «projecto europeu» e da Aliança Atlântica julgaram decente para os portugueses (e espanhóis e gregos) a perpetuação de regimes protofascistas, de opressão pela violência e pela ignorância que, também neste caso, não admitiriam para a sua própria gente. Os «pais da construção europeia» estiveram entre aqueles que decidiram, conscientemente, perpetuar regimes que, como o Estado Novo, tiveram um preço incalculável — no tempo histórico colectivo como no tempo biológico individual. A consolidação democrática no coração da «Europa» — um tempo de paz, que é o tempo da sementeira e da colheita — foi paga, em parte, com o juro da totalitarização de várias periferias, incluindo o país onde nasci. A «Europa», rápida a julgar e a catalogar, não devia esquecer que, antes de pagar (como ouvimos hoje dizer) a «integração» de Portugal, fomentou e ganhou com a sua exclusão. A Guerra Fria teve uma segunda cortina de ferro a oeste, nos Pirenéus: a cortina da reacção, simétrica da cortina da revolução. Incómoda equação, esta, para um português: engolimos hoje aulas de contabilidade de quem não soube, na devida altura, dar-nos lições de liberdade. A figura primeiro heróica e depois trágica do general Humberto Delgado é a melhor ilustração da relação pouco edificante entre as potências ocidentais e Portugal. Jovem oficial, apoiou o golpe militar e a emergência de Salazar; em 1943, oficial superior da Força Aérea, teve um papel crucial na negociação do acordo que possibilitou a utilização dos Açores pelos Americanos e a viragem da guerra no Atlântico (e depois na Europa continental); em 1958, concorreu contra o candidato de Salazar às eleições presidenciais, mas faltou-lhe o apoio imprescindível de Washington e de Londres à ideia de um processo de democratização em Portugal. Após anos de exílio, acabou assassinado na fronteira espanhola por um agente da PIDE.
Num dos episódios maiores da História do século XX, a hipótese de uma democracia em Espanha foi esmagada com a ajuda da Alemanha nazi, imortalizada na tela mais famosa de Picasso. Portugal, é claro, não teve guerra civil e, portanto, não houve sequer ocasião de vivermos o nosso «momento-Guernica». As coisas passaram-se de forma mais perversa e profunda. Em socorro de Salazar e do Estado Novo vieram, no pós-guerra, com um Plano Marshall oficioso, os velhos amigos Ingleses e os novos amigos Americanos. Ofereceram ao regime a frieza do cálculo dos parceiros de Portugal na NATO e o discreto investimento estrangeiro (alemão, americano, francês,britânico,japonês...). Foi esse o oxigénio que permitiu ao Estado Novo sobreviver artificialmente para lá do seu prazo de validade histórica. Esse investimento foi exactamente isso: aplicação de capital com a intenção de cobrar dividendos e de obter um retomo estipulado e mensurável. Quem não compreender isto ou é especialmente ingénuo ou especialmente crente no altruísmo a fundo perdido. A lista (e o mapa) de investidores é impressionante, mesmo sem ser exaustiva: Damag (RFA) e Babcookôt Wilson (Inglaterra) na Metalurgia do Montijo; Procon (Inglaterra) na Refinaria da Matola, em Moçambique; Péchiney (França) na Fábrica de Alumínio do Dondo, em Angola; Phoenix-Rheinruhr (RFA) na distribuição de energia da Metalurgia do Seixal, construída por um consórcio de empresas alemãs e belgas; United States Sted Corp. (EUA),Morrison Company (EUA), Tudor Engineering (EUA) e D.B. Steinman (EUA) no projeto da Ponte Salazar; Ingersoll Rand (EUA), fabricante de compressores c equipamentos afins; capital sueco na construção da celulose da Socel na Margem Sul; Krupps (RFA) e Hojgaard et Schultz (Dinamarca) nos investimentos mineiros em Angola; etc, etc, etc.
O capital estrangeiro no pós-guerra continuou a melhor tradição de um império que foi a única potência impotente da Conferência de Berlim e que obteve e manteve as colónias africanas empurrado pela conveniência britânica de contrariar os apetites imperiais da Alemanha e da França. Dos Caminhos de Ferro de Benguela, obra estruturante do projecto colonial de Angola, às grandes companhias coloniais do vale do Zambeze, em Moçambique, o império português era uma máquina oleada a dinheiro inglês, alemão e belga. Se a esse facto acrescentarmos o investimento do pós-guerra em Portugal, compreendemos de forma mais nítida a natureza real da mítica «visão» de Salazar. E ficamos elucidados sobre o tipo de colaboracionismo que deu a mão à «modernização» entrópica encetada pelo Estado Novo entre metrópole e colónias. Foi o capital oriundo das democracias ocidentais que pagou a distopia de Salazar, um país que gastava um terço do Orçamento com as forças armadas, numa época em que a educação era contemplada com menos de 10 por cento. Pior: foi esse «investimento» que deu margem ao ditador para, na metrópole, manter contentes os únicos fiadores do seu poder — os militares, sempre os militares — e, nas províncias ultramarinas, envolver Portugal em três frentes de guerra que tiveram um preço incalculável em sofrimento humano e atraso social. Na vaga de abertura da «Europa» do pós-guerra, teria sido legítimo pensar que a descolonização das colónias portuguesas seria o motor saudável da democratização do país.Tragicamente, sabemos, a teimosia de Salazar determinou que acontecesse o contrário. Mas importa recordar que a «Legião Condor» à portuguesa foi o que hoje se chamaria uma coalition of the willing de bombardeiros americanos, helicópteros franceses, navios alemães. Foi preciso comprar a alguém e ninguém, então como hoje, fornece armamento e equipamento militar de graça. Recentemente, nos arquivos de Moscovo, vieram-me à mão diferentes documentos sobre o papel da Alemanha na guerra colonial de Salazar. Num deles, de 1969, Amílcar Cabral, líder do PAIGC, tenta acordar a opinião pública alemã para o facto de os estaleiros Blohm & Voss, de Hamburgo, terem em mãos uma encomenda de três fragatas para a marinha de guerra portuguesa, «propícias à utilização» na Guiné. Lembrei-me de uma passagem do escritor sueco Sven Lindqvist em que ele recorda uma discussão, na sua adolescência, num pequeno porto norueguês, a propósito da ocupação nazi alemã e sueca.
O jovem Sven alegou que antes de 1945 era ainda criança mas um dos pescadores respondeu-lhe qualquer coisa como: «Sim, mas também aproveitaste do saque.» Não é uma questão de explica Lindqvist, mas de decência e sentido da realidade. Nestes momentos de turbulência europeia, a pretexto do caso da Grécia, recorda-se a questão das indemnizações de guerra. A mim que, em 1968, nasci num país e numa região ignaros, filho de um homem que combateu três anos em África e de uma mulher que não tinha água corrente ou luz eléctrica em casa, ocorre-me perguntar: a quem é que eu exijo uma indemnização de paz? Ao Presidente americano? A rainha de Inglaterra? A chanceler alemã? Ao secretário-geral da NATO? A «Europa», na pessoa do Dr. Barroso? Ao CEO da Krupps? A ninguém, evidentemente. Mas a todos eles exijo, se exige, que deixem de tratar os países «sob intervenção» como um covil de preguiçosos que ainda não compreenderam o valor do trabalho e que merecem viver sem salários, sem protecção social e sem horizonte de futuro. O progresso do «Sul», aliás, não foi apenas desperdício, e serviu bastante bem as exportações dos países industrializados do «Norte». Basta circular em Portugal e ver os carros alemães, os camiões suecos e os tractores americanos... Tomemos, aliás, uma metáfora mecânica: a quem o compra, um Bayernmobil dá status e prazer de condução; a quem o fez, seguramente, já deu emprego. O ganho maior é de quem usa ou de quem fabrica? Ou, para ser mais claro: o «consumo» de alguém já foi inscrito na «competitividade» de outrem.
Desespero quotidiano, angústia perante o futuro, irascibilidade nas relações, desprezo pela classe política, politização fora do espaço partidário e parlamentar. É este o retrato do país no outono de 2012. Otelo Saraiva de Carvalho avisou que Portugal está à beira de «uma revolução não-pacífica». A sorte do Governo, e dos Portugueses, é a única conquista inamovível da democracia portuguesa: já passou o tempo dos golpes de Estado. A favor da troika e dos inclementes que nos governam há também o peso do passado: a pobreza tão cara a Salazar. Foi apenas há uma geração que os Portugueses deixaram um quadro social em que a dieta de um indivíduo normal era de um copo de leite por dia, uma pequena peça de carne por semana, três ovos por mês e uma galinha por ano. Pobres já nós somos, como recordou Passos Coelho. Estranha coincidência: a parte inferior do rosto de Passos é incrivelmente idêntica à de Salazar. A vingança de um sorri para nós na sobranceria do outro.
Resta, pois, a rua, morada comum da raiva.
Genebra, Outubro-Dezembro de 2012
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