Exercícios para Endurecimento de Lágrimas, Maria Sousa, Língua Morta, Dezembro, 2010
A apresentação de um livro pressupõe que há nele um elemento, ou elementos, de desconhecido. Só em parte isso é verdade em relação a este novo livro de Maria Sousa. Publicados previamente em linha, convocam uma questão que poderá vir a revelar-se profícua, se um dia vierem a estudar-se estes dias que nos couberam. A publicação na Internet é hoje comparável ao que, noutro tempo, foram as revistas de primícias literárias, ou consolidadas aventuras. Se, de facto, mais tarde houver quem olhe para trás, em busca destes passos que damos, poderá historiar-se esta liberdade que dá azo pleno ao caos da incipiência, mas que alberga, por vezes, uma flâmula que não se consome nas cinzas em que arde. A poesia de Maria Sousa situa-se nesse território perigoso em que se atravessam todas as dificuldades. Que passam pela procura de uma capacidade de calibrar, com as palavras e sua disposição – como na prestidigitação da elipse – «o aconchego de se ainda voltasses/ abre-se em palavras surdas» (p.12) –, o que é matéria incandescente e queima, ainda que com resultados díspares, a produção do poema.
Como quem intentasse, pertinaz, traçar um círculo – «regressos que desenho para portas por abrir» (p.23) –, em camadas sucessivas, ou cavasse na terra a sua própria lura, em derredor, em gestos que anulam as mãos e se fixam no próprio solo, no corpo que lhe cabe – «como movimento imperfeito da respiração/ aceito lágrimas» (p.11) –, os versos de M.S. volteiam, ondeiam; não, como em Sá-Carneiro, no ar, mas no terreno, núcleo problemático de um caminho que se faz refazendo-se, desfazendo atrás de si todos os sinais, todas as pistas. Assim, não há ajudas ao viandante que se faz à viagem, antes se ataca o mais incauto passante onde ele menos espera. Esse, um dos feitos destes poemas. Apesar de indícios de sinal oposto – «para não te perderes pensas/ em deixar marcas pelo caminho/ guiar-te pelo barulho dos carros» (p.10) –, em que vivem os gritos abafados de uma contradição, que se escava entre a desolação dos caminhos e as luzes mais triviais, nada existe para auxiliar o leitor – mas para acossá-lo, deixá-lo presa da dúvida, esbulhá-lo das suas certezas. Os melhores destes poemas são aqueles em que o descontrolo que parece subjazer à feitura dos versos é contrabalançado pelo que parece ter sido um exame rigoroso da sua orgânica, a vigia formal, a atenção às ataduras da sintaxe, o trânsito do encavalgamento, a selecção do léxico – «o tempo é um argumento que nos fecha a porta» (p.34).
É antiga, e de notáveis consecuções, a tradição de uma poesia que se conjuga pela estranheza, pelo inesperado. Esta poesia faz-se, pelo contrário, com materiais bem simples. Não se caça a incidência rara, o material invulgar, o brilho fátuo da pedraria preciosa. Por outro lado, não se cai nos baixios do simplismo, na microleitura torpe, ineficaz. Ao arrepio de outras tentativas, não temos aqui a sensação de estar a ver um diaporama miniatural, uma pequeníssima encenação que apenas poderá interessar às mãos por trás do títere. Esta poesia ainda não perdeu (esperemos que não perca) o tino da leitura (ainda que tempestade adentro) em potência – «escrevo o que ainda conheço» (p.22). Nos seus melhores momentos, esta poesia consegue significar sem abusar da retórica, abalar sem perpetrar histerismos – «explico-te então as repetições onde lentamente/ envelheci no teu corpo» (p.16).
Quando se opta (ou se é levado a tomar a opção) por fazer das palavras um veículo para emoções filtradas por uma película friável, o resultado é, muitas vezes, desapontante. Nestes poemas, felizmente, são menos os casos em que isso acontece, e não será despiciendo anotar o modo desabrido como a exploração emocional – desabrigada como «um nervo exposto da memória» (p.23) – é, nos poemas, domesticado por um pulso firme, o mesmo que controla o sangue que nele vibra, cercado pelos limites da respiração, do verso e do branco que o rodeia. Questões como a da forma dos poemas (bem manobrada, nestes textos), ou a do próprio livro (unido num caderno que evoca a parte da escrita que temos mais perto da mão, a de um bloco-notas justamente encadernado, ou de folhas volantes sabiamente cosidas), hoje, apesar de tudo, pouco habituais, deveriam, aqui, talvez, equacionar-se. Notas, estas, as dos poemas, para bem da sua consecução, longe de soltas, unidas por um fio que, se não é de Ariadne, não se perde, também, no labirinto que engendra – embora poucos indícios deixe, poucos traços permita, que se sigam.
Se, ao falarmos de pendor lírico, fixarmos o âmbito de tão resvaladia designação numa matriz individualizante, fortemente subjectiva, conducente a uma leitura não excessivamente realista de coisas e seres, então, teremos de reler essas apelações – «o coração é um órgão que/ espreita pelos buracos da gramática» (p.9). Haverá que procurar no corpo dos poemas o esbracejar tenso de uma entidade (des)reguladora que luta entre a dissolução e a unidade, que luta, friso, entre o desgoverno e a temperança. Como se porfia para conseguir ver por entre a construção inapelável dos códigos, a solidez impassível das normas, a «gramática».
Talvez de modo significativo, o livro escolhe, ou foi escolhido por, uma epígrafe de Sarah Kane. A morbidez que sobre os versos poderia lançar a projecção da autora de Psicose 4:48 não tolheu a poesia deste livro. Exercícios para Endurecimentos de Lágrimas gera, porém, uma natural contiguidade temática e de tom com a malograda inglesa – por meio da disposição melancólica, elegíaca, da citação inicial. Acresce que, após uma leitura menos superficial, as palavras de Kane desmontam a dor para melhor a entenderem. Desenrolam a esteira desolada em que estes versos se estendem, situados para lá das lágrimas, ou aquém dessa expressão fisiológica e emocional. Um estado de coisas que o título de Maria Sousa cristalizou, petrificou, diríamos, na fórmula achada, que endurece o que fora líquido e não poderá mais sê-lo.- Hugo Pinto Santos
quarta-feira, dezembro 08, 2010
Uma apresentação
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