quarta-feira, novembro 24, 2010

Memória do Café Gelo

à memória de Mário Cesariny de Vasconcelos

No Café Gelo, um grupo de poetas
demanda o elixir de vida curta,
de longa morte lenta e absoluta
___e sílabas secretas.

Mesas de mármore, cadeiras sépia;
eis um café à beira do abismo:
conversas incendidas, sismo a sismo,
___no desabar da época.

Revolta, ódio, fome, febre atroz:
no riso pode haver isto e tristeza
e grande amor do sonho, e da beleza
___a que o grupo dá voz.

Não morreu este grupo: é perene
seu eco que deixou alto-relevo
numa parede-mestra, aonde subo
___a pulso e tão solene!

De cima da parede espreito e vejo
uma mesa ocupada por nós todos:
assembleia de pássaros ignotos
___em ilhas de desejo.

Vejo o corpo de glória de Lisboa
reclinado no ombro do Ernesto
para ler bem o seu ensaio honesto
___dedicado a Pessoa.

Vejo o Herberto a discutir mui louco
com o Gonçalo Duarte e o D'Assumpção;
o Forte tem o coração na mão
___esquerda e fala pouco.

Vejo o perfil do Saldanha da Gama,
o Vergílio em tríptico esboçado,
Raul Leal, d'Orpheu, Henoch irado
___com lucidez de flama.

Vejo um adolescente que sou eu
e que aspirava tanto a morrer jovem,
sentado, entre nós outros, quase à margem
___numa fresta de céu.

Manuel de Castro bebe o seu bagaço,
João Rodrigues faz desenho à pena
e Mário Cesariny põe em cena
___a sua luz no espaço.

Passaram para mais de cinquenta anos
e uma tal luz persiste, não esmorece:
ilumina a leitura até ao vértice,
___em versos soberanos.

Poeta engalanado de galfarros,
noctívago andador com pés de jade
e poesia, amor e liberdade,
___e mais de mil cigarros.

Nas nuvens, que se formam ao redor,
repousam borboletas d'asas pandas,
inebriadas pelo fumo às ondas
___e cada vez maior.

Rio de fumo espesso que atravessa
o jovem mágico, o das mãos de oiro,
esse que a remar não se cansa muito
___e olha tão depressa

tal se fosse de moto a singrar
no Tejo até à foz, do céu suspenso
por um fio de voz, vindo do imenso
___cintil azul do mar.

Na sombra, Cesariny d'alto porte,
agora dá mais luz, arde a cidade,
em poesia, amor e liberdade,
___até matar a morte.

- António Barahona
in Relâmpago n.º26, Fundação Luís Miguel Nava

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