
O vento a rondar os dragoeiros
morreu Ulrich Mühe e o seu rosto antigo
que olhara em tempos na minha direcção
enquanto ouvia a Apassionata de Beethoven,
o amor e As Vidas dos Outros. eu vira o filme
sozinha, num teatro vazio como uma igreja
abandonada de Tonino Guerra, com a cerejeira
a erguer-se entre as cadeiras e o palco
que ninguém vê. ficou tudo ligado: aquele olhar
subterrâneo que regressava agora a águas fundas,
a minha avó a ajeitar, com os seus dedos térreos,
a planta que morreu com ela, a resignação
das gaivotas ao longo da praia
e as palavras de Borges sobre
as coisas que morrem em cada agonia.
ouvirá Mühe, nos seus auscultadores,
a nostalgia do vento a rondar os dragoeiros?
és tu que cantas, Lhasa, com os melros negros,
a luz melancólica desta manhã?
quem dormirá no colo da minha tia,
protegido pelas suas mãos de árvore?
o que morrerá comigo, avô, quando eu morrer?
- Renata Correia Botelho
in small song, Averno - 2010
1 comentário:
profundo.
Enviar um comentário