quinta-feira, setembro 23, 2010

A lua cheia

Após receber a carta
de meu pai, minha mãe
começou a vender
os móveis,
queria custear a viagem
deixando intactas as poupanças.
Vinham os compradores
e uma senhora levava o rádio
ou a televisão, outra um tapete,
outra um vaso de flores.
A casa esvaziava-se sem critério.
O meu irmão e eu,
de regresso a casa,
fitávamos a lua
que ia entrando às mãos cheias nos quartos.
Minha mãe já dormia, ou estava quase.
Deixávamos as luzes apagadas
por causa dos mosquitos.
Pouco restava já: um armário,
as nossas camas,
o frigorífico e uns lustres.
A vida agora, sem o nosso pai
e sem os móveis,
era um parêntesis.
Não tínhamos vontade de dormir.
O meu irmão servia-se
da sua limonada e sentava-se
numa das varandas,
e eu na varanda do outro lado.
Fitávamos o mesmo céu.
Era como velar o sonho de minha mãe,
como se sempre tivéssemos sido adultos.
A lua entrava
e não encontrava
obstáculos.
Estávamos de férias
nessa vertigem, tínhamos
entre mãos
uma viagem sem regresso.
O meu irmão agitava
o gelo no seu copo,
eu não sabia ainda o que fazer,
estava inteiramente vivo,
inteiramente inexpressivo.
Não sei se era feliz
ou desgraçado,
mas absorvi
esse verão como se fora o último,
como um resumo
da minha infância,
como a cifra de uma idade
cerrada com estrondo,
e nisso tive sorte:
poder dizer que se acabou,
aqui se corta esta meada,
reunir num lugar
toda uma época,
é enterrar verdadeiramente algo,
ter consciência
do que é estar vivo,
antigo como qualquer pedra.
E então vejo
como continua subindo ao céu
idêntica, invariável,
como se dissesse sou a mesma
e vocês são os mesmos,
tudo é o mesmo para sempre
e o tempo não deu um passo desde aí,
já não acredito nele, e se acredito
já não me aflige como antes.

- Fabio Morábito
in La ola que regressa (poesia reunida)

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