acumulamos: a avareza no acto
de nos amarmos; o azedume, os vários
domésticos queixumes, os dejectos,
os cacos dos púcaros desfalcados,
o casquilho ardido que ninguém vem
consertar; e o tempo sobretudo
que empatamos, que tu nas tascas
matas, desgostas-me o hálito a mosto,
a sanha que abre a porta à procura
da agressão, o acolhimento da crónica
resignação com que te nego o beijo,
nino no colo o filho e logo não
te abro os braços que sobre ele enlaço.
E as coisas tantas que reclamam nossa
dupla presença: o banco que empurra
o tampo à máquina que enferrujada
recusa trabalhar, a sopa rala
no prato cavo e a colher na boca
que impede a fala, a rebeldia dos
bens que possuímos e restituímos
à entropia, lentas tardes letárgicas
corridas de reposteiros no culto
dominical atento do alheamento
e prostração, os dias úteis cercados
por relógios, fadiga, esquecimento.
Na tua falta porém o enfado
cede à inércia e falha-me energia
para fazer dia após dia a cama
larga, exausta cedo ao cheiro azedo
que exala a nossa morte se propícia
a noite os corpos trepam conciliam-se
me pego então à fronha amarrotada
absorta faço ronha, de nós
não peço mais senão de novo ouça
toque do telefone encantamento
onde soe contrafeita tua voz.
- Margarida Vale de Gato
in Mulher ao mar, Mariposa Azual
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