Ao Manuel, que ajudou a varrer as migalhas.
A estante, imensa, estendia-se ao longo de todo o comprimento da parede grande. Uma estante de portas, fechada, adivinhando-se um interior com fileiras e fileiras de livros. Como um roupeiro de palavras prontas a usar. Olhando em redor, pensou: — Da casa de um Escritor espera-se excentricidade.
Ao fim do corredor encontrava-se o escritório, no qual uma ampla secretária ocupava o centro, convergindo nela todo o espaço. Era habitada por um copo de água solitário, tingido de laranja-guronsan; sem que ali se pudessem encontrar papéis desorganizados, canetas secas, loiça ou cinzeiros por lavar. Nenhum vestígio de um esperado frenesim mental subsistia, sobre o imaculado tampo de bétula. O tampo que teria servido de sustento à redacção dos seus mais famosos livros.
Separada do escritório por uma fina parede, a harmonia da cozinha era cortada por um reluzente frigorífico inox. Um monstro cinzento no qual, uma vez aberto, se concentrava uma exaustão de garrafas. Compostas, ordenadas nas prateleiras de plástico transparente acidentalmente tingido pelo aroma azedo de vinho derramado. Nem a mais insignificante das migalhas ali teria lugar: o seu sintomático avistamento ditaria prognóstico psicótico àquele que a visse.
A sala, obra de ampliação, era toda em vidro. Um sofá de couro vermelho tinto gritava estridentemente o seu tom no branco predominante da casa. Convidada a sentar-se, Sofia, sentiu-se como se tivesse mergulhado num copo de leite magro, quente e nauseante como o que a sua mãe a obrigava a beber, antes de sair para o colégio (e que, ao fermentar-lhe no estômago lhe dava uma constante sensação de enjoo). Tentando afastar a memória, Sofia pediu para ver a biblioteca.
Pedira com o seu melhor sorriso, e então viu o anfitrião engasgar-se com o vinho que havia surripiado do frigorífico. Arqueando as sobrancelhas levemente, tornando mais suave o pedido, esperou que o escritor se recompusesse.
— Gostava muito de te mostrar mas, infelizmente, todos os meus livros ficaram em casa da minha mãe. Ao ouvi-lo, estupefacta, Sofia voltou o olhar para a estante (recordando as vulgares histórias, comuns à maior parte dos seus amigos que mudaram de casa, debatendo-se com a trivialidade íntima que todos os apaixonados por livros enfrentam, a árdua tarefa de os transportar de uma morada para a outra, o olhar reprovador dos senhorios preocupados com o peso dos livros sobre o soalho). Ao espanto inicial de Sofia, juntava-se o facto de saber que o escritor tinha abandonado a casa materna há mais de uma década.
— Mas posso dar-te um exemplar do meu último romance. Disse-lhe, levantando-se e dirigindo-se até à estante. Foi abrindo as portas, e Sofia viu nas prateleiras da estante branca, dezenas e dezenas de lombadas, também elas brancas (a única discrepância inscrevia-se nas letras negras com o nome do escritor aposto). De costas para ela, retirou do seu repetitivo espólio um exemplar para lhe oferecer. Sem coragem para lhe pedir uma dedicatória, Sofia agradeceu.
Então, vendo-a subitamente vulnerável perguntou-lhe: — estou cansado mas gostava que ficássemos a conversar até mais tarde, importas-te que compre coca? Dito assim. Assim dito, com a simplicidade mais limpa que Sofia alguma vez lhe conheceria. Sem voz, acenou-lhe um tímido consentimento. Em poucos segundos viu-o agarrar no telemóvel e encomendar cinquenta euros de coca. Com tamanha destreza que, não fora a natureza do produto, ela poderia imaginar que se tratava de uma pizza. Vinte minutos mais tarde alguém tocava à campainha. Com a encomenda entregue, o escritor, sorridente agora, levantou o saco de pó branco, agitando-o no ar: — queres que te faça um cigarro?
— Não, obrigada, não consumo. – Envergonhado e desculpando-se pela compra, escondeu rapidamente o invólucro na segunda gaveta da estante. Procurando desfazer o desconforto, Sofia disse-lhe que não se incomodava que ele fumasse, aproveitando para perguntar o que realmente interessava: — Fumas enquanto escreves?
Escritor, conhecido especialmente pelas longas e minuciosas descrições de bebedeiras e experiências com opiáceos e alcalóides, seria de supor que o fizesse; Sofia não ficaria chocada, acreditava que só se deve escrever sobre aquilo que se conhece. Sabia que, quando ele escrevia, a função lhe tomava todo o tempo (motivo pelo qual se demitira do seu último emprego a recibos verdes como argumentista numa cadeia de televisão). Achara bonita a ideia de um escritor que só o pode ser a tempo inteiro, íntegro. — Geralmente escrevo um romance em dois meses, durante esse tempo procuro deitar-me cedo e acordar cedo, não bebo e não consumo durante o processo. – Espantada, pensou no desgosto que teriam os seus fãs, se o soubessem. Ouvia-o agora falar junto de si, quase intimamente, mas contra o calor proximidade choramingava a quente: — O prémio. O prémio… preciso do prémio – o copo cheio de vinho esfumava-se entre os seus dedos, enquanto o repetia. Detendo o pasmo, procurou instintivamente a casa de banho, deixando-o a balbuciar como se ela houvesse permanecido.
Refrescou o rosto. Ao lado da torneira de água quente viu um copo com cerca de quinze escovas de dentes. Todas em tons rosados, uma paleta abusiva, excessiva, um obsceno ‘degradée’ rosa. Adivinhando-se mãos femininas.
O escritor adormecera no sofá durante a sua ausência. Parecia agora um gigante, frágil como uma marioneta sem fios. Apagando a luz da sala, Sofia vestiu o seu sobretudo verde-escuro e, ao fechar a porta atrás de si, não pode deixar de sorrir: as cores, as cores tinham uma contabilidade antagónica, o vazio do branco, o excesso do rosa; as cores detinham uma verdade agónica e essa era a mentira.
Ao fim do corredor encontrava-se o escritório, no qual uma ampla secretária ocupava o centro, convergindo nela todo o espaço. Era habitada por um copo de água solitário, tingido de laranja-guronsan; sem que ali se pudessem encontrar papéis desorganizados, canetas secas, loiça ou cinzeiros por lavar. Nenhum vestígio de um esperado frenesim mental subsistia, sobre o imaculado tampo de bétula. O tampo que teria servido de sustento à redacção dos seus mais famosos livros.
Separada do escritório por uma fina parede, a harmonia da cozinha era cortada por um reluzente frigorífico inox. Um monstro cinzento no qual, uma vez aberto, se concentrava uma exaustão de garrafas. Compostas, ordenadas nas prateleiras de plástico transparente acidentalmente tingido pelo aroma azedo de vinho derramado. Nem a mais insignificante das migalhas ali teria lugar: o seu sintomático avistamento ditaria prognóstico psicótico àquele que a visse.
A sala, obra de ampliação, era toda em vidro. Um sofá de couro vermelho tinto gritava estridentemente o seu tom no branco predominante da casa. Convidada a sentar-se, Sofia, sentiu-se como se tivesse mergulhado num copo de leite magro, quente e nauseante como o que a sua mãe a obrigava a beber, antes de sair para o colégio (e que, ao fermentar-lhe no estômago lhe dava uma constante sensação de enjoo). Tentando afastar a memória, Sofia pediu para ver a biblioteca.
Pedira com o seu melhor sorriso, e então viu o anfitrião engasgar-se com o vinho que havia surripiado do frigorífico. Arqueando as sobrancelhas levemente, tornando mais suave o pedido, esperou que o escritor se recompusesse.
— Gostava muito de te mostrar mas, infelizmente, todos os meus livros ficaram em casa da minha mãe. Ao ouvi-lo, estupefacta, Sofia voltou o olhar para a estante (recordando as vulgares histórias, comuns à maior parte dos seus amigos que mudaram de casa, debatendo-se com a trivialidade íntima que todos os apaixonados por livros enfrentam, a árdua tarefa de os transportar de uma morada para a outra, o olhar reprovador dos senhorios preocupados com o peso dos livros sobre o soalho). Ao espanto inicial de Sofia, juntava-se o facto de saber que o escritor tinha abandonado a casa materna há mais de uma década.
— Mas posso dar-te um exemplar do meu último romance. Disse-lhe, levantando-se e dirigindo-se até à estante. Foi abrindo as portas, e Sofia viu nas prateleiras da estante branca, dezenas e dezenas de lombadas, também elas brancas (a única discrepância inscrevia-se nas letras negras com o nome do escritor aposto). De costas para ela, retirou do seu repetitivo espólio um exemplar para lhe oferecer. Sem coragem para lhe pedir uma dedicatória, Sofia agradeceu.
Então, vendo-a subitamente vulnerável perguntou-lhe: — estou cansado mas gostava que ficássemos a conversar até mais tarde, importas-te que compre coca? Dito assim. Assim dito, com a simplicidade mais limpa que Sofia alguma vez lhe conheceria. Sem voz, acenou-lhe um tímido consentimento. Em poucos segundos viu-o agarrar no telemóvel e encomendar cinquenta euros de coca. Com tamanha destreza que, não fora a natureza do produto, ela poderia imaginar que se tratava de uma pizza. Vinte minutos mais tarde alguém tocava à campainha. Com a encomenda entregue, o escritor, sorridente agora, levantou o saco de pó branco, agitando-o no ar: — queres que te faça um cigarro?
— Não, obrigada, não consumo. – Envergonhado e desculpando-se pela compra, escondeu rapidamente o invólucro na segunda gaveta da estante. Procurando desfazer o desconforto, Sofia disse-lhe que não se incomodava que ele fumasse, aproveitando para perguntar o que realmente interessava: — Fumas enquanto escreves?
Escritor, conhecido especialmente pelas longas e minuciosas descrições de bebedeiras e experiências com opiáceos e alcalóides, seria de supor que o fizesse; Sofia não ficaria chocada, acreditava que só se deve escrever sobre aquilo que se conhece. Sabia que, quando ele escrevia, a função lhe tomava todo o tempo (motivo pelo qual se demitira do seu último emprego a recibos verdes como argumentista numa cadeia de televisão). Achara bonita a ideia de um escritor que só o pode ser a tempo inteiro, íntegro. — Geralmente escrevo um romance em dois meses, durante esse tempo procuro deitar-me cedo e acordar cedo, não bebo e não consumo durante o processo. – Espantada, pensou no desgosto que teriam os seus fãs, se o soubessem. Ouvia-o agora falar junto de si, quase intimamente, mas contra o calor proximidade choramingava a quente: — O prémio. O prémio… preciso do prémio – o copo cheio de vinho esfumava-se entre os seus dedos, enquanto o repetia. Detendo o pasmo, procurou instintivamente a casa de banho, deixando-o a balbuciar como se ela houvesse permanecido.
Refrescou o rosto. Ao lado da torneira de água quente viu um copo com cerca de quinze escovas de dentes. Todas em tons rosados, uma paleta abusiva, excessiva, um obsceno ‘degradée’ rosa. Adivinhando-se mãos femininas.
O escritor adormecera no sofá durante a sua ausência. Parecia agora um gigante, frágil como uma marioneta sem fios. Apagando a luz da sala, Sofia vestiu o seu sobretudo verde-escuro e, ao fechar a porta atrás de si, não pode deixar de sorrir: as cores, as cores tinham uma contabilidade antagónica, o vazio do branco, o excesso do rosa; as cores detinham uma verdade agónica e essa era a mentira.
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