domingo, janeiro 03, 2010

as correntes

Gostava de andar devagar quando todos à sua volta fugiam da chuva. Aprendera a fazê-lo com a sua avó: não vale a pena fugir, Sara: é deus que chora, explicou-me, um dia. Estávamos sentadas no claustro velho da Sé, ela com as mãos abertas via as gotas que convergiam no centro, dizia que lhe contavam histórias. Histórias tristes de gente que conhecera.

Faltavam-lhe alguns meses para fazer vinte anos, há cinco anos, por esta altura, estivera internada. Conhecera então uma rapariga morena com o cabelo muito comprido e frio, partilhavam o mesmo quarto no hospício. Logo na primeira noite, Sara acordara com o som de uma lâmpada a cair no chão. Abriu os olhos e ligou o candeeiro que ficava do seu lado esquerdo. Perto da porta, sentada com as pernas cruzadas, a rapariga pegava nos estilhaços e rasgava o pulso esquerdo. Sara, levantando-se de sobressalto, tirou-lhe os vidros das mãos, - não sei porque o fiz, mas dei-lhe um estalo, sabes o que me disse? – Eu preciso de luz. Ela cortava os pulsos com o vidro de uma lâmpada partida porque achava que, ao fazê-lo, veria luz sair de dentro das suas veias. – Contou-me, sorrindo, como se achasse beleza em alguém que buscasse luz no interior do sangue.

Parara de chover e a água contida entre as suas mãos (antes turbulenta) calara-se, suspensa na brevidade dos segundos que antecediam a queda. Abrindo-as, Sara fizera chover a história sobre a terra negra do claustro velho, onde outrora, a avó, sentando-a pequena, no seu colo lhe segredara: são as lágrimas de deus que nutrem o sangue dos Homens.

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