quarta-feira, novembro 04, 2009

Longo e estúpido

Vou vigiando por cima do ombro
o jardim mais disponível desta tarde,
há outros como eu, a devolverem-mo,
o olhar. Meio distraídos, entregues
a um vento fraquinho
que mesmo assim os arrasta.
A comer aos nossos pés, as sombras
trabalhando um reflexo, tudo
tão certo, é como se lesse o que leio
em voz alta e o espaço em volta
se oferecesse de ilustração mesmo
aos mais desajeitados
versos, somados a custo
com o tédio que mastiguei e
e se fez num bolo enchendo-me
a boca.

Tenho ao lado um velho
de olhos atordoados
boiando numa sombra arroxeada,
já se riu para este lado, não sei se
para mim ou de mim. A mão
tira-lhe do bolso um lenço, assoa-o,
molha umas côdeas
no vinho e leva-lhas à boca enquanto
uma brisa passa e volta nuns rosnidos,
mordendo-nos de leve a roupa.

Há uma música, que não sei de
onde sai, parece afastar-se, mas fica
como um som de água, um cheiro
antigo, e a sensação de que me chama
alguém desde não sei quando.
É isso junto com a bicicleta
de um puto o que me encostou
a adolescência à parede, ou aqueloutro
de mochila ao ombro, bilhete
para o comboio, o das dezassete e cinco.
A viagem de três horas mais uma
de autocarro que fazia de mês
a mês para estar com a Erica.

Junto à plataforma, mas do outro lado,
um gajo vende todo o tipo de merdas
na linha dos semáforos, e recolhe-se
a seguir para outro chuto, atirando
com a consciência nalgum poço de ar.

Lisboa sabe como é, e cede as ruas
como muito poucas cidades aos hábitos
de cada um de nós – alices neste país
que não dá para maravilhas, mas vai dando
para o quotidiano faz-de-conta.

Vou guardando as distâncias,
uns escritos e fixações, a boca meio
aberta para algum balbucio.
Apego-me às variações subtis
no esboço que a luz traceja, ângulos
suficientemente agudos – gosto assim,
da pele sobre a lâmina romba
destas descrições e não me apetece
ser muito mais profundo que isto,
juntar-me a nobres esforços e causas
onde arrefecem vagos prejuízos.
Perdoa-me se vinhas para mais.

Apresentaram-me há uns dias
esta menina, entrou justamente
quando fiquei sem força nos adjectivos.
De zero a dez, dou-me um seis
nos melhores dias, para comparar-me
a ela que d’um três, quatro talvez,
dá para elevar a um cinco,
dependendo da conversa, das horas
ou d’outras, bem mais óbvias,
influências. Uma chavala destas,
feiinha mas de sorriso fácil entre
outros recursos, vai puxando
com as duas mãos pela tua imaginação.

Chapéu de feltro, um borsalino –
estou a imaginar – e a camisa de noite
com pequenos sóis derrubando
sobre charcos de água, feixes de luz
combinando com os cabelos d’âmbar,
champô de camomila, dá-me ideia.

Companhia para ficar a pé
de madrugada a fazer doces e compotas,
falar sem esperar assunto, aguentar em casa
dias seguidos, mudos e quietos,
entre sinais que deixamos um ao outro
em segredo, desmancharmo-nos
nalgum café, dos dela, acalmando
dos dois lados de uma canção,
a letra num francês que não nos deixe
certezas, só um resto de ternura
que a meias deciframos.

E vês isto, vês-me a ir longe-longe,
mas não. Disse-lhe o olá, mais
o tudo bem?, e acho
que estava a ficar tarde.
Desta vez foi mais ou menos essa
a razão para regressar sozinho
a este quarto e passar a limpo
outro estúpido poema.

1 comentário:

Dona ervilha disse...

na medida e bonito.
:)