morrem mais de mágoa do que por radiações nucleares
mas cá nos entretemos nós com activismos piolhosos,
enquanto isso, em muitos lares, escrever nos vidros
continua a ser a única separação entre vida e morte,
carta que salva uma mão de ferir outra ou de se perder
neste mal-estar perante as luzes ou uma fotografia antiga.
A tua "ingenuidade" – paternalismo que concedes às lágrimas -
é o escudo possível diante da sequência mecânica dos dias,
um resquício de inocência em que apoias os cotovelos
e o medo. Ou a capa de um guarda-chuva que compraste
para perderes pouco depois de perderes o isqueiro,
pouco antes de perderes o último laço com a mulher que amas
e de quem não sabes mais do que duas estações de metro.
O metro, apesar de subterrâneo, não cobre todos os teus receios
e não podes garantir que não é teu, por exemplo,
o cadáver na cama de hospital, embalado pelo eco dos pingos de soro,
que não sendo reclamado dentro das vinte e quatro horas legais,
seguirá para a ordem de São Roque; um enterro e um pai-nosso
enfim, não matam mais do que ninguém contar uma hora
(ou qualquer que seja o tempo que leva a encher um cinzeiro)
da tua vida. Rezas e bocejos não matam mais do que a lista telefónica
que tens no quarto de subúrbio e que usas para encher os espaços
entre a tua solidão e a solidão a pagar da miúda a que ligaste.
Afinal, o que é isso de “matar mais?”, pergunta um académico na sala;
um outro homem responde dizendo:
- Às nossas lareiras, uma gravata numa ventoinha resume um homem
ou a cobardia, acrescentarão os avós (e à lareira somos todos avós).
E o académico, que além disso é um suicida em potência, abandona a sala.
Felizmente para ele, não leva gravata; tinha, contudo, uma marca de bâton
debaixo do colarinho e uma chave de quarto de hotel no bolso.
4 comentários:
tão bem.
do caraças,meu jovem, que é uma metonimia para de qualidade (sendo que do caraças é uma parte da qualidade, entenda-se)como de um modo geral a larga maioria dos posts deste blog, pelo que o elogio se estende a todos (e em agradecimento ao comentário que o Sr. Diogo Vaz Pinto deixou há alguns dias no meu blog).
cordial e sinceramente,
Deixa o senhor de lado Tatiana.
Parabéns António, um abraço.
obrigado
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