A criança é um incêndio atrás do prato da sopa.
Jorge Fallorca
Ainda que nos custe a atenção de quase
todos, tentemos ser honestos. Esta cidade
a maior parte das vezes já não serve para deambular,
o pensamento não sabe onde se esconder
e segue por isso num simples descuido, enxertando-se
das cores dominantes, pardacentas, drogas
demasiado leves que não nos bifurcam
nem nos têm deixado grandes alternativas.
Mesmo os menos interessados entendem
que é preciso ir fazendo festinhas no leitor,
deixá-lo sentir-se especial, se não
ele adormece, vira-se para a concorrência, ou pior,
põe-se ele a escrever. Estou a brincar, claro.
Posso virar a atenção para ti – então diz-me
o que trazes vestido?, estás a pensar sair
ou vais ficar por casa entre os teus livros, música
e esta respiração boca a boca que procuras
nos poemas? Afinal, what do you do for a living?
Não me entendas mal, estou a falar sozinho
e a ficar sem paciência. A literatura, evidentemente,
é sempre outra coisa, não isto certamente.
Estava ali sentado, a cabeça entre as pernas em ponto
morto, pondo a hipótese de rapar o cabelo com a gillette
ou agrafar a língua ao céu da boca… Deves saber
do que falo. Vamos surgindo de improviso:
um pacote de leite meio gordo, um bigode branco
com que brincámos em frente ao espelho;
já tomámos banho hoje, cortámos as unhas
e ficou muito pouco por fazer.
Quando éramos garotos tínhamos a lua treinada,
atirávamos-lhe paus para ela ir buscar, ou íamos com ela,
saco de plástico na mão, apanhar gambosinos.
Agora a imaginação encheu-se de sinais proibidos,
estamos para aqui pedalando na inércia,
o Outono tão calmo do lado de fora da janela
e nós a arrancarmos as crostas de feridas menores,
com um duende fechado na mão e uma chuva
miúda a cair-nos no papel.
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