terça-feira, setembro 30, 2008

recupera a palavra mais pobre: sombra
que uma criança persegue com a vela

Rui Nunes

Nestes dias que não nos dizem nada,
revisitamos ideologias largadas
na puberdade dos versos – borbulhas mal espremidas
que nos deixaram marcas no rosto – ou apenas
penitentes lembranças e outros passivos.

É evidente que não vale a pena coligir nada disto,
a infelicidade e os seus primeiros brinquedos
– dores de feridos ainda ligeiros.
As melhores metáforas não passam para já
de transfusões de sangue doente,
sombras corrosivas que nos escapam
da boca antes de se dissolverem
no copo ou, pior ainda, num beijo.

Aqui estamos envergonhados, sem dinheiro
para nos deitarmos em quartos de hotéis encantados
com vista para alusões poéticas menos canalhas,
daquelas que servem tantas vezes
às reinvenções fúteis de uma solidão
que já desconfia das suas vastas glórias literárias.

A vida – essa puta – passa-nos sensivelmente
ao lado, no reflexo oblíquo de uma garrafa que
começa a ficar vazia.
Entre os destroços do horizonte
chegam pensamentos
de cigarro na mão. Juntam-se a nós
nas madrugadas mais lentas e ajudam a queimar
as sobras de um mundo prejudicial ao sono.

Mas a poesia é só isto, uma religião de abismos
nos interstícios da insónia,
meras assombrações ou deuses acanhados
que tentamos entreter com estas
falsas rezas. E depois? – perguntas tu –,
depois, se tiveres sorte, o silêncio
encosta-se a ti e adormeces. Se tiveres azar,
pode um elogio desses mais baratos
vir estragar tudo.

1 comentário:

Nuno Dempster disse...

Estes seus poemas largos que me encantam. Não é um "elogio barato". Não é sequer um elogio. É um pensamento escrito em voz alta.