Quando a conheci lembro-me que já nesse tempo
preferia não falar, sentava-se lá atrás e fingia prestar
alguma atenção ao mundo. Passava para o caderno
o que era preciso saber, fora isso
nem sublinhava com cores, nem fazia perguntas.
Conseguia ser interessante sem fazer o mínimo esforço
e chegava a ser muito distante sem incomodar ninguém.
Acho que durante uns tempos quis apaixonar-me por ela,
mas como o que eu sabia era só ficar a olhar
e dizer coisas demasiado previsíveis, nunca retribuiu
com mais do que a linha de um sorriso fácil, desses
sem compromissos, e eu tive que colar a paixão
a um rosto mais propício.
Naquela altura estávamos a estudar os poetas
e a poesia portuguesa. A gramática, os esquemas rimáticos,
a métrica, esse tipo de coisas que acabam por dominar
a compreensão de quem prefere não se envolver.
Teve na altura o seu primeiro excelente e conseguiu
um elogio da professora, além dos olhares gélidos das cadelinhas
que se sentavam na fila da frente. Não lhe vi nenhum sinal
de alegria a espalhar-se pelo rosto, nem um desacerto
ou um sorriso mais esforçado. Recebeu a folha de exame
e voltou a sentar-se lá atrás.
Uns dias mais tarde saiu para o recreio e quando passava
pela minha carteira deixou cair uma folha amarrotada.
Esperei (e não vale a pena dizer que pensei em fazer
outra coisa), abri a folha e li os primeiros versos
de um poema incompleto. Sinceramente
não percebi quase nada. Quando voltou devolvi-lha
e pela primeira vez vi na cara dela qualquer coisa maior
que também não percebi o que era. Perguntou-me se o lera,
eu disse-lhe que não e ela voltou a sentar-se lá atrás.
Acabámos o segundo ciclo e nunca mais soube nada dela.
Não sei se escreve poemas ou se já naquele tempo
desistiu deles. Mas aquilo em que ainda penso muitas vezes
é se eu hoje já seria capaz de entender
aqueles primeiros versos, amarrotados.
1 comentário:
uma história muito boa, diogo... do género daquelas que eu também vivi...
gostei
um abraço
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