foges de casa em roupa interior, com uma chave de fendas
no elástico dos boxers - para o que der e vier, uma caixa de fósforos
e o que resta das ideias fixas que juntavas quando eras novo
andas de volta dos eucaliptos, procuras movimentos suspeitos,
adorarias ser raptado por extraterrestres, inteligências fascinantes
evidentemente superiores às que te habituaste, ou ver o bigfoot a palmilhar
os bairros mais decrépitos de Lisboa bebendo as sobras de álcool
deixadas pelas esquinas da noite
escolhes ficar sozinho por momentos que não cabem no poema
percorres lugares ermos, sobes a um promontório e por ali te divertes
espreitando o cio dos bichos e as sepulturas
onde abandonam os minúsculos corpos
de dia hás-de dispensar versos, recados
confissões triviais sobre coisas que se acercam
de um amor sem objecto platónico, rearranjas as fórmulas
no teu curriculum vitae, procuras um emprego
que seja adequado à tua desnecessidade de um ofício especializado
ninguém te chama,
ponderas os inquestionáveis sentidos da vida
a iliteracia dos pássaros e de tudo aquilo que dá sentido
à primavera, mesmo a iliteracia
dos teus escritores de eleição nos tempos de infância
quando se lembram de terem sido felizes
hoje chulam os dicionários para satisfação dos clientes
que enchem as livrarias, assaltando o fundo das prateleiras
em busca de alguma inspiração, a receita que precisam
para também terem as suas contracapas
e se dedicarem um dia com total exclusividade
a embalsamar sorrisos intelectuais para a posteridade
assistes de longe a todos os trejeitos
dos rostos diluídos entre detalhes e insignificâncias
perdidos ao longo de listas de afazeres, preocupações discretas
e sucessivas analepses
é perfeito tudo, se observado de uma distância segura
chega a ser um espectáculo grandioso, elaborado a partir
de sombras incompletas e memórias consanguíneas
persegues os corpos que parecem vaguear sem rumo
e sentes uma empatia, uma comovedora ligação
mas nunca te aproximas
não se pode violar o contorno misterioso das coisas
esse é o equilíbrio que nos vai dissolvendo
nos braços uns dos outros, crianças perdidas
que deixaram de chorar
1 comentário:
Grande poema, Diogo!
Sonhos perdidos são o que são.
Abraço,
Pedro José.
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