para a outra
Tu é que lias o futuro pelas nuvens que se abatiam
contra o céu da boca, soubeste sempre o que nos esperava
e não hesitaste em usar o corpo
para servir de parede ao ricochete da solidão.
Era comum ouvir-te falar na impraticabilidade do amor,
é claro que isso para nós se torna esgotante
já que nos esforçamos mais do que a maioria,
mas ainda assim não posso escapar a este limiar
dos meios-quereres visto que ainda estou à espera
da minha encomenda de urânio empobrecido
para não falhar esta época propícia
às bombas atómicas.
Acho que por esta altura já não é preciso dizer
que este poema não é sobre ti. Tu mais do que ninguém
sabes que escrevo com o fingimento total
de um discípulo fiel de Pessoa. Estas dores
não são minhas, nem as palavras, nem as promessas
que te faço nas entrelinhas, acontece
que isto é um poema e quer queiras quer não
tu és um pouco parecida com a mulher que passeia
e anima o labirinto dos seus versos. Mas é claro
que qualquer semelhança com a realidade é pura
coincidência.
Eu teria a esta hora outras desculpas, alvos e presas mais fáceis,
trajectórias mais definidas e ainda a influência de poetas que estão mesmo
a pedir um plágio. Entre tantas recorrências apanhei-me (?)
a pensar em ti e não noutra distracção qualquer,
um desses argumentos manhosos para justificar
o massacre dos fígados, mas fingindo que isto é sobre ti
pode ser que me apeteça imaginar aquilo que vais e não vais pensar
ao leres estes versos sem rumo (que ao menos se escrevem
com a certeza que os vais ler), numa noite
em que me falhaste e eu escolhi
a ternura de uma garrafa de cerveja,
este frio consolador, o beijo molhado e o apelo ébrio -
tu sabes. Já nos entregámos a esta volátil redenção juntos,
enquanto fugíamos àquilo que interessa
para discutirmos o futuro de desilusões mais ou menos próximo
que espera a estes relapsos que vamos escrevendo.
Contratos, por assim dizer, para regular disposições afectivas,
seguindo as orientações da jurisprudência que nos demos ao trabalho de ler,
e sublinhando a importância da solidão
para qualquer ambição literária que ainda
sobreviva escondida debaixo das nossas almofadas.
Queria ainda sublinhar que não sei nada de ti há uns dias,
podias atender o telefone. Tenho coisas para te contar,
nada de especial mas ainda assim... Ontem sonhei um sonho
em que eu não aparecia (tu também não felizmente),
- era um grupo de mecânicos enfiados nos seus fatos-macaco
entre o azul suado e o negro do óleo na hora de almoço,
a lancheira numa mão e um livro de poesia na outra.
Discutiam coisas que eu ou não ouvi bem ou não percebi,
talvez tu entendesses do que falavam. Era poesia avançada.
Depois do horário de expediente alguns seguiram juntos,
falando ainda sobre teoria literária, jantaram, beberam imenso
e depois procuraram putedos numa cidade onde eu nunca estive
mas que no sonho tinha detalhes suficientes
para passar por uma dessas cidades que tu tanto gostas.
Eles queriam satisfazer outras ânsias não menos essenciais,
venéreas evidentemente. Entre nós não sei se serás tu
ou eu quem perceberá isto melhor. Não interessa, à frente.
Depois de umas contracurvas lá encontraram as amáveis meninas
a quem recitaram poemas fabulosos - só tenho pena
de não os ter anotado, havias de gostar.
Bem, acho que era só isso. Liga-me.
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