sexta-feira, março 14, 2008

Os amantes irregulares

Estão por todo o lado as flores atrofiadas, indiferentes ao sol.
Vidas pendentes, suspensas em minúsculos vasos, esperam
uma transmissão televisiva para acontecerem
tudo é um ornamento de nada, insistem em marcar a diferença
figurando nos cartazes dessa campanha que contagia a igualdade,
e sei que não gostas deste tom nos meus poemas
mas não posso deixar de dizer que o céu seria tão mais belo esta noite
se não estivesse obstruído por esse placard com a tua estrela artificial preferida
a vender-te um perfume que já não serei eu mas outro homem a dar-te
custa-me perder-te por tão pouco
“Dó da miséria!... Compaixão de mim!...”
começo a ficar sem trocos para todos os que me pedem esmola,
com o tempo parece que sinto menos, estranho menos, já não me espanto
custa-me envelhecer assim
adormeço mais e acordo cada vez menos, dá-me aquela sensação
de não saber onde estou nem ter quem se assuste comigo do mundo
ou de estarmos vivos, ainda te escrevo sem nada de novo para contar,
mas assim só, como quem apaga os últimos fósforos de uma caixa
que já esteve tão cheia.

Parece-me que hoje é um bom dia para estarmos tristes,
amanhã já estaremos cansados
talvez possamos fumar um cigarro a meias, dividir a morte
por dois à saída de um mundo inadiável e irrelevante,
já aceitei que não vais trocar esses teus sonhos por um copo de vinho barato
que te saberia azedo e frio, que nem queres já saber de versos sem entusiasmos
dedicados a um real quotidiano que deixaste, mas foi isso que eu escolhi
é tudo o que tenho para te dar e nem mais um incentivo ao delírio
que acabará com a tua vida num flash, ou mesmo que numa série deles
capturados pelas máquinas dos papparazzis, que acabarás
como tu própria o dizes (sem o entender) por odiar mais que eu odeio a morte.
De qualquer forma a vida, por agora, é tua - perde-a como te apetecer.

Daqui já só o que se vê são vendedores, Portugal ainda não foi anexado (?)
mas não há-de faltar muito, os juros e o petróleo encurtam-nos os prazos
e a alta fidelidade do aparelho com que nos aceleram os tempos
e nos mudam as vontades aproveita mais ao vício delirante dos escravos
do que há razão de quem preferia ter tempo para aprender de cor
uns versos do Cesário.
Aí está ela, enorme, a massa irregular
de prédios sepulcrais, os viveiros onde nos entretemos e somos
da pleonástica cidade que se contenta com a reincidência no erro,
corpos funâmbulos que ensaiam os rituais de esfrega,
beijos como no cinema eles ensinam a dar, estendidos sem fôlego para mais
nos bancos de namoro dos recintos públicos - os amantes irregulares
desencontram-se de si mesmos e como loucas feras
trocam os tributáveis afectos, procriam, dissolvem-se
na esguia difusão destes reverberos, e podes ver, se te afastares,
como o coração se tornou um abismo demasiado gratuito.

Gastos, são poucos aqueles de nós que ainda voltam
a juntar os pedaços da solidão, a recuperar a dor sincera,
esta que é mesmo nossa. Aos poucos reconciliamo-nos
com as pacientes sombras que nos acompanham
no nosso absurdo desejo (quase ilegal) de sofrer.
Vai-se tornando impossível confrontar o mundo com a sua tristeza.
Aquilo que muitas vezes era tudo o que de real tínhamos,
até isso, o lugar mais sensível dentro de nós,
vamos perdê-lo para este mundo novo, covarde,
que preferiu adormecer para sonhar e não mais viver.

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