sexta-feira, março 14, 2008

O barco sem remos

¿Será que te ocorreu ao menos
a necessidade de certificar a queda
do teu corpo contra os braços
e o cheiro de outras mulheres
menos reservadas a si mesmas
ou envolvidas nas elipses poéticas
de uma vida que empalidece na boca
das metáforas, outras mulheres
mais absorvidas no processo
de mergulhar no sal a fatalidade
do estéril sexo que apodrece
no poema contínuo para além
de quaisquer juras de amor eterno?

Hoje o papel de parede não segura
nem um só pensamento relativo
à ineficácia dos projectos humanos
dos quais te vais safando. O inferno
alugou o quarto ao lado do teu e está
a respirar por cima do asma televisivo
que refrega nesta hora matinal
as primeiras distracções embalando
o peso infecto de todos aqueles
que já se encheram de tantos sinais
e rugas que perderam quase toda
a vergonha das suas mortes e
quando se olham ao espelho

vêem apenas o barco sem remos
para a deriva da indivisível noite,
sem lâmpadas nem estrelas.
Os cadernos dispersos que te devol-
vem reflexos teus esbatidos
por entre o mau gosto de certos versos
e incertos destinos, aproveitam sempre
a um diagonal incêndio que te atravessa
o rosto num conflito entre mais
e menos inexpressivos silêncios.
Por um momento desejas
que pudesses ter sido alguém diferente,
um cantor desses que aceitam o fado

de serem populares e espantam
fantasmas acompanhando a banda
que toca canções de esquecer a vida
para as plateias que, por qualquer desculpa,
se ajuntam nesses subúrbios
onde o terror se abate como um ciclone
e varre do chão os copos e os corpos,
o vidro e carne esfacelada, deixando
tudo limpo para outros sorrisos
escancararem o desgosto
em tons de amarela sinceridade.
O teu nome soa como um engasgo
na pronúncia destes últimos dias,
os outros nomes que chamavas

foram violados por absurdos desses
que envaidecem a puta da vida.
Esta manhã, enquanto o mundo
não acaba, preparas-te para o entardecer
penteando o avanço da calvície
frente a este espelho e sentes o medo
a acumular-se nos ombros.

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