terça-feira, janeiro 29, 2008

Insectos

invertebrados de sangue frio, articulamos o silêncio entre preces
enquanto aguardamos uma improvável metamorfose
somos da família dos insectos, eu e tu, alimento de pássaros
as nossas asas são curtas para os nossos corpos, do nosso voo
o mundo guarda o zumbir que se confunde com a respiração dos mortos
ligamos os tracejados, organizamos as geometrias espontâneas
de uma natureza que se equilibra no nosso elevado número, individualmente
somos insignificantes, excrescências, os elos desprezados numa cadeia
que se habituou a conformar a beleza segundo padrões que nos marginalizam,
é isso que somos, as margens invisíveis da paisagem

pensa: porque é que o pintor quando guarnecia os seus nenúfares
não concedeu alguns golpes ligeiros do seu pincel ao contraste
que traz ao mundo a nossa omnipresença?, somos nós os mosquitos,
as baratas, as aranhas, as formigas, as moscas, somos nós
as testemunhas privilegiadas da verdade, essa palavra proibida
mesmo (ou sobretudo) entre poetas, se há quem possa reclamar a verdade somos nós,
nós que estivemos lá nos momentos em que as posturas se furtaram a si mesmas,
em que todas as vestes ficaram penduradas e a nudez se exibiu total e lúcida

nós vimos as pregas desenhadas pela dor nesses diáfanos corpos coçados,
torcidos, enxotados e envergonhados, tal como nós...
não somos muito diferentes, nós e eles, também temos as nossas pragas
tragédias e holocaustos, é aí mesmo que reside a verdade, a matriz
que compõe a gigantesca paisagem - essa tal obra de um inteligent design -
é nos números que reside a destreza e a ironia que finalmente nos amansa,
porque confiando nos números, a partir de um certo ponto, quando os dedos
já não chegam nem para esmagar nem para contar, somos todos iguais,
é desse ponto em diante que os homens se confundem connosco,
tão indefesos, desprezíveis e dispensáveis como meros insectos

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