terça-feira, janeiro 29, 2008

Canto

O canto da velha toupeira
audível nos intervalos do terror
leite dos sonhos __esse murmúrio no sangue
que a dor __do lado do mistério
causa ao homem quando atravessa a terra
essa rosa por explodir __de amante em amante
no coração do mundo
esse pranto à flor da pele
e debaixo da língua
numa girândola de pétalas sem fim
de todas as cores do universo
à hora do lobo __no relógio da morte

o canto da velha toupeira
quando a lava dos séculos
se abre num relâmpago de chuva ardente
desfolhada na cabeça da esfinge solitária
sob um silêncio azul de aves doidas
quando uiva nos ouvidos famintos
e trespassa a solidão do fígado
pedra a pedra até à última pirâmide
de corredores de espelhos lentos
um rosto à esquerda __outro rosto à direita
e um país __desconhecido e belo
muito alto __no centro

quando as lágrimas da memória
atravessam de súbito o horizonte
para além do cadáver das fronteiras
até à luz que nasce de um oceano
contra a luz doutro oceano maior
quando rebenta em sílabas de soluços
na boca dos que jazem para sempre soterrados
sob as estátuas negras dos heróis
sem nunca ter escrito o nome
e cegos surdos e mudos
são milhões de fantasmas

quando na orla da sombra dos patíbulos
se erguem labaredas de náusea
até ao vómito da cólera
e dentes de pavor mordem o ar em volta
num círculo de cal viva
quando entre estandartes brancos um pão negro
se ilumina como um tambor embandeirado em arco
nos braços nus através da paisagem
de lâmpadas sonâmbulas
e árvores de asas de fumo florido
entre clarões de neve

quando o sono da paixão engendra monstros
de olhos abertos de pupilas podres
que devoram as cores do arco-íris
quando flutuam plumas
que se inclinam sobre a muralha da china
e uma grinalda de mastros cintilantes
não é um cometa no deserto
mas a lenta cabeleira violenta
das grandes coisas inauditas
sussurradas __como um fio de sangue
de letras de fogo na garganta

quando a ração de horror de cada dia
distribuída entre bandeiras triunfantes
é saudada pelos ministros da morte
quando __oriente após oriente
para além da peste
surge __em grandes ondas caligráficas
o mapa do mundo dos jardins suspensos
na rosa de todos os ventos
desfolhada na órbita do tempo
cada pétala uma asa
cada asa um oceano sem nome

o canto da velha toupeira
ondulante entre o diálogo dos mortos
na cinza das pátrias destruídas
em troca de uma estrela __e outra estrela
até à constelação chamada sempre a idade de ouro
e ilha da reunião de todos os desejos
e do amor único e louco
até à grande maravilha do princípio
das mil e uma noites sem fim
numa nuvem de sangue muito doce
erguida à altura da paixão dos olhos
perdidos no infinito

- António José Forte

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