
debaixo dos telhados de vidro da noite
começam a juntar-se os estranhos, a vagabundagem
várias espécies de desertores, mulheres desfiguradas
ovelhas negras, crianças bipolares
formam filas nas traseiras de um edifício com a fachada arruinada
através de um minúsculo orifício são oferecidas prescrições
de todo o tipo de fármacos e distribuem-se sedativos e tabaco
faz frio em todo o lado, as ruas engripadas
não oferecem protecção, os poucos refúgios
acolhem ladrões e vampiros, a escumalha
há meninas enfiadas nos caixotes dos supermercados
acendendo alguns fósforos contra o breu das suas vidas,
algumas misturam-se com as putas esperando que um carro
as leve dali, para onde não interessa
num beco ali ao fundo os putos misturam-se,
fingem a infância como podem, jogam com tristezas cristalizadas
o jogo do berlinde, fazem as covas com os dedos rasgados pelo frio
bem perto dali prosseguem as investigações de um caso bicudo
police line do not cross
alguém finalmente achou um pêlo púbico no local do crimeos detectives ainda se debatem com as pistas deixadas para trás,
versos de um homicida que deu em poeta ou de um poeta
que quis chamar as atenções, deixar o cantinho das livrarias
e tornar-se um bestseller ou o movie of the week
mandaram chamar um Nobel da literatura, alguns críticos literários
(sempre muito ansiosos por participarem na acção),
ainda chamaram com alguma urgência o valter
hugo mãe e o peixoto
apesar de lhes terem sido oferecidos uns subsídios
com o intuito de os motivar
ao fim de um par de horas declaram-se incapazes
face ao delituoso vernáculo daquele que se intitula
«O Caçador de Rebanhos»,
em desespero de causa o chefe da polícia tenta contactar
com o Manuel de Freitas, que como já se esperava
se recusa desde logo a formar juízo sobre o caso,
finalmente é o Mexia que com a sua característica bonomia
ajuda como pode e até traça um perfil para o assassino,
um homem de estatura média, loiro olhos azuis com uma vida sexual
cheia de fracassos, a típica descrição do serial killer que anima as noites americanas,
fica tudo na mesma, mas há a esperança que o pintelho traga a solução
apesar de ser domingo aprova-se uma lei para facilitar a obtenção
de licenças de porte de arma mesmo a tempo da passagem de ano,
a vizinhança celebra os últimos minutos do ano
com disparos ao sorriso amarelo da lua,
entretanto há quem aproveite para atirar a matar,
um homem de idade que assistia às festividades de roupão à janela
já não verá a luz do novo ano mas os olhos na sua cara fixaram
a luz lá muito ao fundo do túnel, a sua cabeça deveria ser alinhada
no ambiente de alegria fúnebre das paredes de um orgulhoso caçador,
todos aqueles troféus de caça, a fulminação dos olhares
perspectivando para as repetitivas gerações futuras
o mais singular de todos os momentos,
a natureza surpreendente da morte
no andar em baixo Ana ouve o peso do corpo
cair como cai o silêncio, já não ouve os tiros lá fora,
arruma com todo o cuidado a casa das bonecas
com que se tentava distrair do mundo
e escreve os primeiros versos de um longo poema, uma elegia
que um dia ganhará um prémio tão importante como
todos os outros, qualquer coisa sobre as andorinhas
perdidas no inverno, qualquer coisa que afinal
só quer dizer que a Ana se sente um pouco
como o resto do mundo, triste e com frio
na meia-noite noite de mais um inverno.
2 comentários:
A foto é surpreendente!!!!
o poema é surpreendente
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