terça-feira, setembro 27, 2022


Se nos punham de castigo, zarpávamos,
pois qualquer quarto, como cedo descobrimos,
balança se afiarmos bem o harpão,
e não se está pior aqui que esses tipos
algures a sós em camarotes de navio,
cabanas de madeira, celas de monge.
Olhando da janela víamos as colinas
onde floria o tomilho
indiferente aos humores do tempo,
e o vento soava a uma longa conversa
exaltando-nos o ânimo. Passávamos tardes
a tentar decifrar os fios telefónicos, 
cada linha deveria reter da vida
um reflexo ardente, e um suspiro
carregado de ânimo solar era o bastante
para essas gavetas onde cresce o trigo.
Ensinadas as espigas a gemer sobre a página,
a voz torna-se uma medida, uma distância
que se conta em dias de viagem,
âncoras a meio do corredor
levantavam o soalho, e no lugar
dos retratos rabiscávamos nas paredes 
a nossa linhagem anárquica de ancestrais 
inventados. Mal sabíamos ler,
e não era invulgar os jornais 
trazerem relatos espantosos,
mas já lhes faltava o coração
para serem realmente duros e cruéis,
para se inspirarem nos grandes desacatos,
e, hoje, se estamos velhos, um tanto
empenados, o mais difícil é o pouco
que os quartos tremem, este cheiro
a enfermaria geriátrica, esta desolação
que se arrasta, aí onde agora
a nossa é uma língua perdida,
que serve mais para barafustar, arrancar
folhas ilegíveis à margem dos sonhos,
desenhar o contorno de um corpo belíssimo
que perdemos de vista há muitos anos,
reunir impressões distantes, lentas,
surpreender passagens furtivas
daquela obra barbaramente ambiciosa
e intolerante que nos prometemos
nos tempos de juventude. Resta imitar a letra,
compor a cena, levar cada dia mais longe
esses gestos que na morte
encontram por fim a sua tinta.


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