quarta-feira, junho 08, 2022


O passado começou a perder o cheiro, 
as memórias não colam, no escuro somos
tão frágeis que mal respiramos,
e é tão pouco o que sabemos de astronomia
que nenhum brilho, nada nos serve de guia.
Peço um falcão que saiba a noite de cor,
o mais alto, um rasto de luzes medido, o gosto
do vento, e como outras coisas ainda
gostaria de inventar o sopro, a respiração,
por agora ofego, afundo-me, tremo, extingo-me.
Antes, no entanto, ao menos uma volta ainda
darei pela prisão onde me querem encerrar,
terei dias, cadernos enxertados e linha de coser.
Mais que versos novos, expressões alheias,
hipóteses vagabundas, ecos voltando,
imaginadas vozes dos que morreram
e dos que não sabem como,
flores apanhadas tão longe umas das outras.
Um cheiro de outras terras. Passar uma hora
na galáxia de um estranho, sentir o tremor suave
com que as coisas se afastam,
aquele momento de pousar o pé na praia
de uma ilha desconhecida. Durante uns anos
formular só perguntas, as tontas e as outras:
como é viver no livro que te arruinou a vida?
Ficar perdido no som de certas frases,
o sentido demorado, os relevos,
como as descrições engolem novos dias.
Uma língua só para me esquecer, uma outra
para te ir buscar quando as estrelas voltarem
ao de antes, e me lembrar de como as líamos.


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