sábado, junho 11, 2022


Do outro lado da vida, onde tudo parece pior
alguém ainda escreve, mesmo quando o tempo
não deixa já nenhum gosto nos lábios,
quando o som não leva a nada,
nem pode refazer o espaço, alguém persiste
anotando duas coisas ou três,
e chamar pelos lugares, ter aí num prato
os parafusos da paisagem que tanta falta
nos faz, afina este acto tão pobre, tão necessário,
na clareza das suas imagens, sementes, 
e mesmo que não haja céu, pousa
um pássaro, descose outro fio da toalha
sobre a mesa, e vemos copos manchados
pelo vinho e pelo riso, 
gestos começados faz muitos dias,
os dedos sujos de tinta, e desenhos das raparigas,
essas ninfas de água doce que há muito
fizeram de nós animais da espera
por trás de um pequeno ramo de flores,
revendo as provas da noite anterior e da anterior,
os olhos exigindo tanto do escuro, 
uma floresta rumorosa aberta como um livro, 
ali alguém revê as antigas fronteiras, acena
aos velhos caçadores de sons, e mesmo
que te pareçam mal as formas assim
caídas no papel, e soe a exagero a descrição
de uma batalha ou de algo mais simples,
o modo como assobiávamos no cinema,
enrolávamos cigarros de ar,
fumávamos à sombra dos anjos,
se voltares a folha ouvirás cochichos,
pois sempre alguém sobrevive, e do outro lado,
tenta recordar, ou inventa, mas escreve.


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