terça-feira, outubro 05, 2021


O canto estragou-lhe a garganta,
e o sorriso, dos dentes ao desejo,
deitara a vida fora, e entregava-se só
à fraca febre que lhe ditava as horas
como um sino destroçado
servindo-se da palavra para fazer pressão
estancar o modo como o que fora seu
ainda se perdia, como os velhos amigos
se foram desgastando de tanto arder
apaixonados cada um pela sua loucura
Morto o girassol, ao menos este usava ainda
de uma pose digna, e mesmo cego
incapaz sequer de cheirar o amanhecer,
talvez vigiasse já o sol do submundo
persistindo numa suave heresia
Um pouco como nós nos escondíamos
distribuindo a sombra pelos objectos
por tudo isto que com a sua doçura nos cerca
Quando céu e terra sabem a tão pouco
resta-nos a mão com que sufocamos a distância,
o vidro quebrado que nos morde o reflexo
E se as águas arrastam a imagem das casas
e os homens acordam em lugares inesperados,
sem sabermos se há regresso, 
vamos rente aos dias,
lendo o mesmo cartaz em todas as paredes
como caçadores de nimiedades, 
anjos de outra natureza, feitos para aguardar
a última hora, a pobreza do fim
Com as mãos da noite junto ao rosto,
logo se acenderá um fósforo que prenda fogo
na intimidade de tudo isto, e dareis então
com o universo estilhaçado na carne
sentindo-o vivo na dor de cada gesto


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