sexta-feira, dezembro 25, 2020

Poema do último Natal


Walser morreu há pouco, uns passos mais,
um pouco de tinta na neve, o casaco aberto
tentando cobrir o frio do mundo,
e o chapéu ali como se o tivesse tirado
para cumprimentar ninguém uma última vez
roupa coçada, dedos sujos, aquele apreço
celestial pelas coisas deste mundo, os lábios
no beijo arrastado de um bebedor nocturno,
esse modo clandestino de se raspar nos muros.
A sua obra é o suave asilo que nos espera
a paixão fria que toma distância de tudo
e ensaia um recomeço saindo para caminhadas
sob qualquer luz, paisagens que não nos
importam muito, aqueles nomes que não
pronunciamos, o vagar lento, a carência
um sabor que se demora na boca, as cerejas
e os fungos, a aguardente e as lendas,
as poucas estrelas que contam,
esses mosquitos bêbedos do nosso sangue
e que estimamos como a filhos,
o caderno onde fomos retendo um enxame 
de precários apontamentos, corpos, rimas
essas coisas simples que não querem morrer
nem se entregam ao bárbaro furor do tempo.
Quando nos calamos é ele quem temos a nosso lado,
quando entre nós e o fim apenas está
um candeeiro, e se ouve o suspiro
das moribundas gerações de aves
presas nos poemas, os ossos dos marinheiros
despedaçados, alguma voz trémula ainda
cantando, o pó de uma igreja que sopramos,
que cai despindo formas frescas, 
impressões que nos mordem os lábios,
essa árdua prosa de que se gosta
quando quase tudo perdeu o gosto,
esse triunfo cavalheiresco quando
nem do nosso nome estamos certos,
pedimos desculpas, sorrimos e vamo-nos.


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