quinta-feira, agosto 13, 2020

Vai longe a idade dos franco-atiradores.

 

Não havendo cuidado, os nossos melhores papéis, os que custaram a um homem não uma só mas sete vidas, nove, quantas encarnações?, essas asas de hipóteses todas feitas em pó, essas saídas que não se toma, que acabam bloqueadas por se ter dito o que a paixão exigia, por se ter feito da mão, pela escrita, um desses lobos de sombras projectadas na parede, ter provocado o susto, com gatafunhos desses que se abatem sobre o mundo num desvio à última da loucura, raspados, aflitos, respondendo a uma causa capaz de revivificar esses corpos minúsculos e negros, porque, como já alguém disse, o fim dos tempos é cada minuto de cada dia, porque é preciso exaltar quem nasce e arrasta esta consciência, e se cansa de ver como o que não falta é quem finja que as palavras não têm importância, como se não fossem os homens quem mais cedo perde a realidade, estrafegada pelo discurso das hipócritas conveniências, por tudo isso, é importante cuidar que não ficam perdidas, enodoadas nas mãos dos que julgam que andar nisto é montar peditórios, fazer a fita das altas patentes, exigir benefícios por "grandes sacríficios" em nome da pátria, e a literatura (a desgraçada) surge já não como recreio, mas como emporém, um filho maluco e que se baba, diz os maiores horrores quando se apanha com as tias frente ao serviço de chá, nem tem já qualquer préstimo como carreira de tiro, traseiras sombrias onde ajustar contas com as bestas luminosas, e, para que cartas como esta não fiquem penduradas na parede dos burocratas da coacção cultural, emolduradas como diplomas, a fingir que as assinam por baixo, é preciso garantir que não se suprime a licença a quem mais queira "investir contra os cornos duma série de touros mansos e partir alguma louça". O que não falta em qualquer tempo são zeladores para virem dizer que a porrada que se dá hoje não vale, e inventar muitas regras, demarcar coitos, assinalar faltas, garantir que o golpe foi abaixo da cintura, fez dói-dói, ou virem com a cantiguinha dos ataques "ad hominem" (adoram mascar estas banalidades em latim, supondo que isso lhes confere um selo inquebrável), e, em desespero, ainda nos borrifam com água benta, ficando desesperados porque nem assim, nem com alho, nem com invocações presunçosas... Estão à espera que deus se materialize apenas porque julgam ter encontrado o diabo. Pobres coitados, trancados nas suas igrejas erigidas do pé para a mão, e ficam lá dentro com os seus penicos quase a transbordar, e antes de vir o sol não saem nem para fazer chichi, com um pavor ridículo de serem engolidos pela noite.

Ex.mo e Il.mo Senhor:
Vitor Silva Tavares
Rua da Emenda, 30, subterrâneo 3
1200 LISBOA

Não lhe dou, caro Vitor, nenhuma novidade: sem V., eu nunca teria chegado a escrever uma única linha na Imprensa portuguesa. Foi por V. ser coordenador do Suplemento Literário do D. L. e do & etc que eu, nos já remotos anos 70, pude, embora sob censura dos coronéis, investir contra os cornos duma série de touros mansos e partir alguma louça. Bons tempos!...
Também não lhe dou novidade nenhuma se disser que, tendo de voltar atrás e sabendo o que hoje sei, faria certamente as coisas que então fiz, pela boa razão de que escrever e escrever assim é uma das poucas coisas que sei fazer...
Sei que a primeira atitude das pessoas foi, na altura, considerarem-me um provocador e julgarem que eu nada mais queria do que dar nas vistas. Sabe V. que eu tinha motivos de sobra para não dar nas vistas e razões para não provocar. Mas tinha também uma vontade ingénua de escrever e uma indomável necessidade física de o fazer polemicamente.
Vontade idêntica foi a que encontrei no autor dos textos que lhe venho propor para publicação. É um rapazinho discreto, ingénuo, inseguro e muito trabalhador. Ninguém diria que pode acalentar a raiva demonstrada nos textos que fará a fineza de ler.
Importa dizer que a liberdade de expressão decretada com o 25 de Abril de 74 não lhe foi muito propícia. O seu (o nosso) & etc, por razões phinanceiras, acabou e, no meu caso concreto, como nos de outras pessoas, a possibilidade de escrever em liberdade total nunca mais nos surgiu. Também aqui não lhe dou novidade nenhuma: a censura não-oficial proliferou e é eficacíssima; os censurados de ontem são hoje óptimos censores e não lhes escapam as nossas artimanhas. As censuras internas funcionam drasticamente e as regras que espartilham os plumitivos não são menos severas hoje do que no tempo dos coronéis. Vai longe a idade dos franco-atiradores. A imprensa recusa sistematicamente, hoje como ontem, não só tudo o que cheire a doentio e a dissolvente (estou a citar Pessoa), mas até o que cheire a discutível. O ofensivo e o demolidor não passam. Recusa-se a Diferença, valor que, há-de concordar, sobeja nos escritos do neófito que lhe apresento. Os espalha-brasas são indesejáveis (exceptuando talvez os de direita que até já chegam a deputados e a ministros). Quanto mais mole e mais cadaveroso, hoje, melhor se vende!
O país dos brandos costumes tomou a iniciativa e reina Tony Silva, às vezes com o pseudónimo de... vide titulares das nossas colunas culturais.
Pergunte ao Augusto Abelaira, ao Vicente Jorge Silva, ao Diogo Pires Aurélio se os seus independentes jornais podem publicar alguma coisa que não esteja prevista nas invariáveis regras do bom-senso e do bom-gosto, da boa camaradagem política, literária, etc.... Não podem.
É um facto não termos assim muitos jornais fascistas; temos felizmente alguns pró-soviéticos e bastantes pró-europeus. Não nego que isso não seja um progresso relativamente ao 24 de Abril. Mas, se eu quiser atacar sem brandura os brandos costumes nacionais, tocar no intocável, romper com a normalidade, não tenho jornal que mo permita. A Igreja, por exemplo, nunca pode ser atacada; o Presidente da Republica, só de tantos em tantos meses, em ocasiões determinadas que eu nunca sei quando são, porque nunca são quando eu julgo que são.
E tudo isto em nome de quê? Essencialmente da falta de papel. Ante a falta de papel, toda a literatura se torna impossível e desnecessária. Desnecessária porque impossível e impossível porque desnecessária. Impossível porque falta o papel; desnecessária porque, se falta o papel, todos os outros problemas são ociosos e inoportunos.
Que jazer? O mais ajuizado, todos acharão, seria parar de escrever. A desgraça é que o autor destes «Segredos» não deixou. Pior: a dar crédito a certos inquéritos ultimamente vindos à luz, será mesmo o único escritor português que já não tem gavetas para guardar tanto original. Ora estas prosas que ora lhe envio são alguns dos muitos escritos que ele tem parido nos últimos meses. Enredo, estilo, personagens (esta Jacinta é irmã legítima da Alice carroliniana e da Eugénia de Mistival sadiana), tudo é do tal meu amigo que prefere guardar o anonimato. Eu limitei-me a traduzi-los em vernáculo (?) e a copiá-los à máquina, emendando um ou outro erro de sintaxe (?) e dando aqui e ali uns retoques que os tornem compreensíveis. As razões de os capítulos se denominarem garrafas serão explicitadas no devido tempo.
Brevemente, logo que a possibilidade e a necessidade da literatura se me imponham, enviarei umas coisas da minha lavra.
Seja benevolente.
Saúde, afinal, é que é preciso e é o que lhe deseja de todo o coração este que se assina
Manuel João Gomes.

(Manuel João Gomes, Os segredos da Jacinta, Lisboa, & etc, 1982: 3-5)

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