segunda-feira, agosto 03, 2020


Os roubos são menores agora, as tentações tornam-se secretas, os crimes cada vez mais íntimos, mandamos vir de fora, não só a comida mas o sentido, textos cruzam-se, um mesmo ar respirado em diferentes épocas, rouxinóis mortos a oriente e trazidos em livros como flores secas, uma videira selvagem nasce das linhas impressas, nutre-se da atenção que se lhe dá com o livro aberto, respirando, caça como pode, deixa-lhes um olor a vinho espesso, que nasce já mancha, já fruto esborratado, pedindo-nos que fechemos os olhos, sustento-me como posso, um predador da orla do bosque cheirando debaixo da lua os restos da festa, aqueço o orgulho como uma lata de sopa, só me resta de contactos essas presas aturdidas, que se perdem, amuam e fingem abandonar o grupo à espera que as chamem de volta, mas encontram-me a mim, num primeiro exercício, mostro o que sei, meço-os com pássaros, sei os nomes selvagens, imito assobios e trilos de toda a espécie, pode cheirar-se um pesadelo de infância a léguas de distância, e com algumas perguntas indiscretas percebe-se como a coisa evoluiu, arrasto um saco de papéis pesado como um corpo, memórias soltas, há outros piores, melhores do que eu, atam tudo isto numa trama bem mais delicada, enredam fabulosamente, deixam folga suficiente para dar margem a todo o catálogo de ilusões, e nunca abrem a boca antes da altura certa, não têm impulsos, não entretêm uma falsa consciência, não brincam aos remorsos, a elegância é a coisa mais fria, e estranhamente doce, sabe sempre o que dizer e como, comprime os lábios nos funerais, mas por dentro cantarola.

 

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