segunda-feira, agosto 31, 2020


A noite tem os seus escriturários dispersos estrategicamente ainda que o não saibam, corpos que de tão frequentes deixam de ser vistos, mesas a um canto, acumulando garrafas negras, e, como de um barro mais escuro, são feitos dessa carne que serve de pouco mais do que de aviso, ela tem-los onde quer, cobrando-lhes a dose miserável de talento que os mantém presos, afinando eternamente a sua teia, para que lhe descrevam no menor número de frases possíveis a derrota, desde que se levanta até que se deita, sei-o porque em tempos fiz esse turno, nos anos em que estudava, e mais alguns depois, e que sombras passava uma mão à outra, do juízo à boca, a caneta como se degolada, esvaindo-se, e se me distrair volto ao mesmo, apago, dou por mim como eles, nessa relação degradante que se toma, com um orgulho grotesco, pela face mais crua do real, ainda posso ouvir o realejo a tocar, e tenho de me controlar, as frases parecem pacientes enervados entre sessões de choques, por mais que espumem, ainda que encarem o demónio, lhe ofereçam o que lhes resta, é tarde, passeia nestes sítios, o cabrão, delicia-se, e nem é o desespero que lhe dá gozo, é essa fúria de que se sufoca, o olhar absurdo às voltas antes de se tornar claro que não há saída, um sobressalto em carne viva, lavo a roupa eu mesmo, passo-a ferro uma e outra vez, até em sonhos o faço, lavo-me insistentemente e enfio-me nela, tudo se me oferece como paisagem, a cidade ri-se do modo como vou numa agitação estranha até para mim, há alturas em que um gajo deixa de acreditar na sua própria vida, nas circunstâncias, naquilo que lhe fizeram, e se o nosso desastre nunca nos impressiona tanto como aos outros, são eles que esperam ver-nos ultrapassar a coisa, e garantem, de cada vez que nos vêem, que parecemos muito melhor, e então uma mulher vem à cabeça, e, no esforço de te livrares dela, vê-se seguida pela voz acanalhada do único amigo que não se conforma, começa tudo dizendo-te a porra que é, como é pior do que se imagina, diz-me coisas terríveis e faz-te rir, gosta de repetir que uma mulher é como uma meloa cantalupe, e já nem precisa de concluir, de adiantar que logo que se abre, apodrece, e está coberto de razão, sobretudo quando te diz que o pior é as histórias que se contam, como estão todos cobertos de razão, e que somos nós que ficamos com as noites na pele, como a cicatriz cada vez mais funda de um duelo, uma coisa da qual vimos a descobrir só muito mais tarde que foi um golpe ao qual, ao contrário do que nos diziam os outros, não sobrevivemos.


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