domingo, outubro 27, 2019

Morreu José Bento


Morreu José Bento. E se o mais certo é que o saibas já, seremos poupados à costumeira debandada estéril, às participações de porta a porta, à notícia acotovelando-se a si mesma, sem esconder uma certa euforia necrófaga. Não se verá a habitual agitação dos que se apressam a vir dar o ombro ao caixão sem peso que logo segue, como adereço da farândola. Não vai desfilar a grande caixa de sapatos vazia, como um estranho peditório. Assim, o mais discreto dos lutos é já o único que nos esmaga, como uma noite lentíssima que se põe em todos os fusos horários entre uma família afastada, arruinada face à nobreza de outrora, cultivando, assim mesmo, essa apreciação pela língua, pelos usos que lhe extraem a diferença que é o verdadeiro ouro dos dias, esses ângulos inacessíveis que fazem rodar o mundo e plantam a discórdia e a variação entre as leis que o entregam à repetição. Afinal, como explicar a quem não distingue do barulho essa arte de música, que mesmo calada impõe a sua distinção? É evidente que a escolha de guardar silêncio só está ao alcance de quem, querendo, pudesse ter falado, e assim alguma outra coisa se visse, alguma impressão mais funda se adiantasse à nossa compreensão. Eis o dia em que nos despedimos de um mestre que nos foi corrigindo a postura sobre essa montada de que só alguns estamos conscientes, enquanto outros lhe fincam a espora e castigam o animal na estúpida tentativa de o apressar e à vida. Antes e depois do tradutor (que desaparece deixando alguns títulos encravados em editoras dessas seríssimas e que, afinal de contas, se borram para toda a grandeza que está já lá muito alto, e que ainda procura subir mais algum degrau sem apoios, sem garantias ao nível do saldo de tesouraria), antes, depois e durante a tradução de todo esse rol de aventuras e testemunhos ao longo de épocas da língua espanhola, estava um poeta de uma tranquilidade e persuasão clássicas, desses que não maçam, antes reservam a gota bastante numa tão estimada e velha garrafa, um raro tesouro que se abre só quando a companhia o exige. Era desses que escrevem como se mortos há dois ou três séculos, sem a pressa de vir causar espanto numa paisagem que se cobriu de espantalhos, os quais fizeram já o seu trabalho de tal modo que “Não há ninguém para ouvir, se acaso cantam/ a chuva, pássaros, ausências vibrantes/ na cozinha de outrora” (já vamos ler o resto do poema mais abaixo). E isto com o benefício de poderem acompanhar o que se fez depois, o que hoje se faz contra a boçal monotonia e mesquinha mitomania característica da época. Quando o que por aí anda nas incessantes investiduras da puesia, entre o incontido orgulho e o ressentimento, a impingir os livros de versos onde não fazem mais que engarrafar o próprio ego, estes sem mesmo o quererem, sem nem se mexerem, vão-se transformando numa aristocracia das nossas letras, uns que esquivando-se, não parecem muito interessados em ser descobertos por aqueles incapazes de descobrir seja o que for por si mesmos; não se pavoneiam nem são vistos entre a tropa bisonha que aguarda a sua vez para desfilar em trajes menores nas praias da literaturrice, mas espremem a hora, esgotam-na, matam-na à pancada ou atraem-na sussurrando admiráveis venenos ao ouvido. Cozinham-na requintadamente em autênticas liturgias ou esfolam a presa sem cerimónias e com o que quer que tenham à mão. De qualquer modo, sabem que não há condimento que mais faça pelo sabor de um prato do que a fome. Em vez de fazer criação de umas pobres espécies a que se pode dar morte sem grandes trabalhos, torcendo um pescoço que nem luta dá, dedicam-se aos sentidos da falta, a razão que descobre a sua lucidez na perseguição só dessas coisas sem as quais não se vive. José Bento era protagonista de uma admiração sem igual. Desde logo, sem tempo a perder. Parecia misturar às competências de um bibliotecário as de um alquimista, dominando as propriedades do idioma a um tal ponto que sobre ele podia elaborar fórmulas como se se tratasse de química. Num tempo que já não precisa de proibir e nem de queimar livros, e quando basta criar todo o tipo de divertimentos e distracções para que a atenção se consuma e perca, sem chegar a reconhecer-se como uma disciplina, estes tradutores que não se confundem com os mercenários ao sabor do esquema editorial, desenham a própria clandestinidade, abrem um mapa de pontos de contacto, refúgios, acessos e saídas face a um tempo em que quantos mais se reúnem menos ali se encontram. Neste tempo, um homem que, a sós, se debruça sobre a verdade que tem em comum com outro, vertendo para a sua língua uma mesma intenção, desejo ou respiro, ajudando-o a dar mais alguns passos na direcção que já levava, há nisto mais humanidade do que em todas essas arenas lotadas em que a histeria exprime a paixão miserável em que toda a nuance se dissolve como em ácido. Eis o poema prometido, e que José Bento dedica a Joaquim Manuel Magalhães, em Sítios (ed. Assírio & Alvim, 2011):

Não há ninguém para ouvir, se acaso cantam
a chuva, pássaros, ausências vibrantes
na cozinha de outrora,
– no telhado onde a noite repousa de seus astros,
nas ramagens transidas mais que por raízes
sôfregas dos passos enterrados:
pelo vazio talhado por quantos se apagaram
sem poder acenar-lhes sequer o olhar restante. 
Do fumo, nem névoa nem olor,
(aquele extenso olor de lembranças e pinho)
só a sua escrita viva nas lajes, nas madeiras
aqui, diz a caruma a espertar o café;
ali, que ateiam lenha mãos tão anafosas
que sob a terra inda me acalentam;
e leio mais além as ceias, os serões
de sabores e conversas fluindo sonolentos. 
Há a porta fechada por uma chave perra
sem haver quem recorde onde ela está guardada;
e a lareira e a mesa, já não pedra e castanho:
rostos sob a poeira sem lábios para a voz;
e o cântaro, a soleira, as janelas, o cesto,
sem água nem pegadas, sem cortinas e pão. 
Longínquo, desconheço o que aí sobrevive:
houve palavras, gestos, achas nem cinza hoje,
calor e não apenas de sol e labaredas,
em redor soltou-se a aura de pólen e trinados;
isto me chama e abriga como as paredes trémulas,
mais de vestígios plenos que de cal e adobes,
onde busco quem fui sem me importar se o encontro,
entre rastos de sombras e de asas já sem voo.

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