Que bando de caquéticos! O meio literário português é realmente invencível na sua cretinice. Estão a desfazer o Saramago em porções a tal ponto ínfimas que, do velho prestígio, parece ter sobrado só o suficiente para a anual carcaça de que se arrancam os pedacitos para causar estardalhaço entre os pombos. No que respeita às letras, há muito se dissipou o seu assombroso apelo. É próprio de gente à míngua de um destino, uma fé mais robusta, que se defenda do mundo cingindo-o a narrativas que não perturbam nada, não atazanam a consciência. É natural, se levarmos em conta aquilo que nos espera, que esta seja uma época toda ela jogando à defesa. Dentro de dez, talvez vinte anos, não só não se falará mais destas porcarias, como ninguém pode esperar que a literatura, nesta degeneração das últimas décadas, tenha a menor hipótese de se aguentar. Esta bimbalhice supérflua vai toda pelo ralo. Toda esta barulheira ficará soterrada. E ainda bem. Talvez restem alguns testemunhos, papéis chagados, linhas escrufulosas, mas não certamente este género de literatura-calmante. Sobre este “Pão de Açúcar”, não posso dizer muito mais do que já disse (aqui está: um, dois, três textos desenvolvidos sobre o assunto). Não bastou que eu tivesse um pouco de razão, fizeram o favor de dar-me uma razão absurda, cheia de hilaridade. E ainda que tenha previsto o prémio, não imaginava que dessem cabo deste, desbaratando a pouca dignidade que lhe restava. Se os que se estão nas tintas nem foram ler, ou tomaram tudo à conta da rabujice sacana deste vosso fiel sacripanta, talvez não se possa descartar de todo a ideia de que ainda há alguns espíritos não de todo amodorrados, alguns que se importam, e que talvez tenham tido curiosidade suficiente para ir saber mais qualquer coisa sobre um caso que, para lá do registo mais sensacional (esse que convenceu o Afonso de que podia esmifrar a coisa) se esconde algo realmente perturbador, um episódio escabroso e que deixa a descoberto um sarilho de todo o tamanho envolvendo as nossas instituições de acção social e, também, o sistema judicial. Assim, e passados anos, o encobrimento de tudo o que falhou e conduziu à morte de Gisberta Salce Júnior é coroado por uma narrativa de uma ingenuidade espantosa, tão edulcorada quanto imbecil, e que revela bem o tipo de produtos que saem das nossas indústrias de consolação cultural. Não vou mais longe aqui porque já fiz o que podia naquela sequência de textos, os quais não podiam simplesmente ser ignorados. Mas foram. O Afonso, os seus editores e os promotores deste sucesso das nossas letras estão-se nas tintas para o que aconteceu com a Gisberta ou com os rapazes. Esta obra é o exemplo acabado da inépcia absoluta daquilo que nos é vendido como ficção. Mas lá se arranjou um jeito de que o triste pão-de-ló ganhasse a cobertura glacé de um “grande” (leia-se: espalhafatoso) prémio. E logo se verá se este caso fica enterrado, ou se os bonzos das letras ainda haverão de sentir umas comichões caso alguém tenha a coragem de fazer uma exumação deste episódio. Quanto à literatura, vamos continuar a assistir a este um-dois-três-macaquinho-do-chinês, com a ficção a virar as costas quando a coisa fica feia ou exige outro empenho, e mais trabalho. Não podemos, hoje, contar com ela para desenterrar seja o que for, traçar um olhar mais fundo nem duro de tal modo que a vida nas suas linhas pareça aumentada. Nem esperamos já deparar nesta livralhada com uma frase que nos doa, nos siga até casa, se nos meta dentro, firmemente, a escarafunchar como uma terrível dúvida. É sempre um cauteloso pouco-a-pouco aquele que serve de processo a estes temperamentos regulares. Um uso da gramática para fins de tráfico de bijuteria melodramática. E gemem sangues de alguns milréis fracos. Sempiternamente as mesmices convencionais. Como me dizia o velho há dias: “A dúvida está a desaparecer do mundo. Matamo-la ao mesmo tempo que matamos os homens que duvidam. É mais seguro.” E esta nossa elite pindérica, as damas com lugar cativo nos júris de prémios, as viúvas de cera, os críticos oficiais, consolam-se com as suas certezas tão pobres e confrangedoras. E renovam-nas indo buscar algum rapaz ao molhe. De tal modo convertidos ao esquema publicitário, a bazófia leva-os a agacharem-se para catar novos valores, como se o futuro viesse numa apanha da conquilha. Uns elogios vagos, umas banalidades preguiçosas, limitando-se a carimbar a caderneta de mais um pacóvio que dê garantias de que vai sempre portar-se bem. É tão fraco o sustento das palavras. Não há mais veneno lúcido nos textos. Só ficou esta literatura de repouso, andando para trás e para diante de pantufas a tentar lembrar o que buscava e se lhe varreu. Estórinhas para essas senhoras cheirando a religião, mas uma religião que não crê em Deus nenhum. Senhoras que têm para anjo, para velar os seus dias, a pobre mosca que lhes assenta sobre a caca moral estrafegando-lhes o juízo. E nisto, quantos hoje escrevem ainda desde alguma outra parte, sem andar nesta procissão entoando as estafadas e tolas cançonetas? O que fica claro é que, para afastar a hipótese de um crime, todas as linhas foram entregues ao tédio, à conversinha mole, a uns enredos de entreter, a um modo de liofilizar a vida, e mesmo o horror com que esta tenta sacudir-nos. Assim, na nossa literatura, e especialmente na da chamada ficção, não se vê ninguém trepar, gritar nos telhados, uivar nas esquinas... Nada. A ofensa capital por estes dias é atentar contra o decoro, o bom senso, a escrita escorreita, que não dá trabalho, não desassossega, não range os dentes nas trevas. O homem já parece estar fora das suas próprias criações. Não há a menor vertigem, não se sente aquela tontura que nos provocam os aspectos trágicos e irremediáveis à medida que penetramos no seu destino. E quem paga por tudo isto são as palavras. Restos. Nem a música resiste, e já só vivemos de velhas gravações que vão perdendo alcance até serem ecos sem pujança. Já não acreditamos em deuses literários. Só capelães, acólitos, beatas. De algum modo, mesmo aqueles de nós que se esforçam, e que vão mordendo o limão, estamos todos sujeitos a esta carência, esta espécie de escorbuto que se generalizou entre a tripulação da nau encalacrada num baixio, e que deixa para o fim os piores, estes moluscos, lambe-botas. Parabéns ao Afonso, que deve estar muito feliz, e que celebrará o prémio sem vergonha nenhuma da atitude parasitária que fez dele a mais segura das apostas entre todos esses novos escribas inofensivos que revelam grande promessa.
terça-feira, outubro 08, 2019
Esfarelar o Saramago
Separador:
perspectivas
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
Nesse caso,fazendo fé,já não ligo a prémios, contento-me com Os Grão-Capitães.
Enviar um comentário