quarta-feira, outubro 16, 2019


uma orelha e um dedo, restos que ficaram na cama, ao lado do corpo que se esvaíra, que triste e estranho terrorista, chegara a enviar uns embrulhos, o correio entregou-os nos dias que se seguiram, numa ordem pouco clara, e todos ficaram na expectativa, as pequenas porções mutiladas de que se separou antes que se tornasse fatal, com a precisão de um rito selvagem, para que soubessem o peso de cada frase, o lado irremediável, que preço pagava com o que escrevia, e todo esse cansaço, as múmias alinhadas, os rodeios, os modos de se perder tempo, que paciência para os protocolos, que estória e que enjoo, essas estórias gastam-nos como má cerveja, o sabor a mijo, a circularidade que tanto nos castra, mais vale abrir a navalha, cortar uma orelha, entre uma mão e a outra desfazer alguma coisa, estrangular uma sombra, damos o gargarejo no copo de cólera de uns poucos, peregrinos que se cantam, espreitam-se, apagam a vela uns dos outros, sabem que a morte é uma fantasia que não exige grandes cuidados, não seca, uma pouca água a cada cem anos, e estes tipos acabam criando à sua volta um cenário de cadeira eléctrica, a mesma corrente que os anima acabará por fritá-los, que diferença lhes faz a afinação, o verbo arranca as suas penas, galga escalas, trepa qualquer baixeza, e afunda nela as esporas, que atropelo de assonâncias, que protagonismo dá aos ventos nas suas peças, como deixa para os estalido a pontuação, e nenhuma imagem parece intacta, mas está ali, toda cosida, remendada depois de que escaramuça, e quanto ao bom gosto parece que foi de alguma ajuda a casa ter desabado sobre nós, vamos arrumando à medida que nos dá jeito, fazendo um tecto como manda a chuva, e a velha máquina de costura que ali está provou ser bem mais calmante, a sua rima é mais desaforada, tem mais vigor, maior alcance do que os poemas que se escrevem, esses infelizes grupos de caça que formam os escritores, às dezenas, se deitam abaixo uma lebre já ficam exultantes, nada pior do que a vida nas composições de um bando de cretinos prolongando os tempos de escola, criançolas envaidecidos, prefiro desenhar as letras com tanta força e tão devagar que todo o sentido fuja, no escuro, calada e a brilhar, a televisão é a minha fada, sorri de tantos modos, faz o corredor do desespero com uma graça que me anima, passo pelo café no caminho para o inferno, bebo a bica, faço caretas no espelho atrás do balcão, quase me faço rir, fico satisfeito com as pequenas dores espalhadas pelo corpo, como se o recosessem depois do péssimo trabalho que foi feito originalmente, tudo está pior, range, assobia a despropósito, eu assombro-me, e na minha pele está-se cada vez melhor, mesmo o horror, como me fizeste notar, não funciona sem o sonho e sem a música, nada haveria a aproveitar de todo este desastre, mas assim é outra coisa, oiço o concerto dos cães à lua, tudo me fica a caminho, uma orelha e um dedo num banco de jardim, com um bilhete, assinado:

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