terça-feira, setembro 24, 2019


"No nosso país de estetocracia – não sei o que se passa noutros lados, com certeza a mesma coisa, embora me pareça que não no mesmo grau – tudo quanto faz gala em pertencer à casta dominante se afirma, antes de mais, adepto do bom gosto, do discernimento estético, da fala elegante, da boa escrita. O lado belas-artes, boas maneiras e belas letras é o lado do mais forte. A casta instalada proclama-se conservatório cultural, e assenta nisso a sua legitimidade. É o seu argumento de reserva, o seu salvo-conduto. A senhora – a senhora Não Me Toques, a senhora Alta Costura, a senhora Pancada Alta – sabe que aplicando verbos no conjuntivo consegue mergulhar numa reverência assombrada o canalizador que conserta a torneira. Mesmo nos casos em que a senhora não tem dinheiro para pagar o conserto. Não é a riqueza que fundamenta os galões, mas o emprego do conjuntivo. Já se reparou nisto? Já se reparou o bastante? Julgo que não. O mito da boa escrita é uma peça capital da defesa burguesa. Se quisermos falar ao coração da casta que por aí lavra, impressionemo-la com os conjuntivos, com o cerimonial do bem-falar oco, com os seus tiques de esteta. Aquele que estragar de uma vez para sempre os santos relicários que ela costuma brandir, como os feiticeiros negros brandem os seus fetiches – os seus grandes autores, a sua Gioconda, as suas cadeiras Luís XV, a sua bela gramática, a sua língua morta esterilizada, toda a sua confusão de conservas de osso que faz passar por arte e cultura –, aquele que conseguir fazer entrar na cabeça do fim da fila que a verdadeira arte viva, a única, e a verdadeira criação inventiva estão do seu lado e não do lado do mascarado patrocinado pelos ministérios, fará tocar a despedida da casta que por aí lavra. Mas, quanto à casta que por aí lavra, teremos de contar que vai defender-se. Ela depende do seu mito e do seu estilo: todos os meios são bons, todos os golpes permitidos." 
- Jean Dubuffet

Sem comentários: