terça-feira, setembro 17, 2019

DA EDIÇÃO LITERÁRIA E DOS EDITORES


Quem está na edição sabe como a regra que vai valendo nos tira sempre o chão, a cada passo estremecemos, anda-se aos trambolhões, entre uma série de desastres, alguns tremendamente felizes, e mesmo que se esteja quase sempre em perda, mesmo das piores enrascadas, sai-se com estórias, não nos falta matéria para elaborar perfis, comparar-se e fugir de si mesmo cultivando relações entre este “género desarranjado”, não perder nunca o encalço dessa sarabanda alucinante, quase todos, com a ocasional excepção, são fabulosamente ingratos, às vezes ao ponto da crueldade, e isto sejam eles radiantes safardanas entre tantos soldadinhos de plástico, oportunistas com um certo brilho, membros de uma incerta realeza, príncipes disto e daquilo que, com os seus modos impecáveis, até solenes, querem saber se estamos à altura da honra de nos tomarem para seus secretários pessoais, e há os fatigantes funcionários que aturamos pelo talento que, inesperadamente, lhes assoma nos escritos, ou esses outros párias bafejados por uma glória discretíssima, que não incomoda ninguém a não ser os próprios. Ser editor é gostar de espreitar a coisa no antes, crua, ainda tremendo de possibilidades, ler por cima do ombro, rezar em voz alta e ser atendido por um deus andrajoso e atoleimado, apreciar a pureza de uma impressão que salvou de se afogar, rodeada de borrões e linhas riscadas com uma fúria que há muito parece ter caído em desuso nos ambientes literários, e é o privilégio de seguir esse esforço comprometido até à loucura, o de quem vai desatando os nós de uma corda e se revolta contra a terra inteira, devido a não sei que afronta infligida por um ser invisível. É um gosto, afinal, de se dar ânimo a essas subtilezas tão ferozes, tão desacompanhadas, dar pelo mecanismo, a música dessa ocupação absurda, uma fornalha em que se queima a vida para dar força às vezes a umas poucas linhas. É abissal a margem para o erro, e, de algum modo, todos se deixam iludir por cintilações de oiro, um pó espalhado, dançando. Colhem-se pistas, firmando esse retrato do desgrenhado detective a cozer uma eterna ressaca, com gestos ingénuos, os dedos gastos, fumados e ardidos de insónia, com a memória como papéis flutuando num minúsculo apartamento inundado. Sem nada de seu, orgulhoso apenas do seu rasto, este tipo de editor ama o descalabro das suas pacatas ilusões, não há nele nenhum rigor, mesmo o seu reflexo parece efeito de uma longa colagem, as coisas sucedem-se com o azar deixando o troco para um resto de sorte. Prossegue nesse modo cambaleante, de quem apenas se guia por uma luz bem fraca, que já nem bruxuleia. Seria uma tristeza, uma canalhice, na verdade, fingir que há algum charme na edição literária, é uma vocação desesperada, em nome de um mundo que há muito levantou as âncoras e descolou deste, tendo deixado apenas o cheiro a despegado, esses traiçoeiros ecos de ordens às tripulações, e ainda temos de aturar esses marinheiros de água doce, enchendo a toda a hora a boca com os ó céu ó mar ó clã ó destino, e temos as enfadonhas canções de bêbados, as mais desconchavadas meretrizes com a sua entrega desoladora, e, nisto, no máximo pode aspirar-se àquela noção romântica que Leminski cunhou para o poema que não se entende, e por isso é digno de nota, com a dignidade suprema de um navio perdendo a rota, assim, editar seria como escrever algo em busca de um desentendimento imensamente desafiante e animador, essa conversa que o escritor israelita Etgar Keret disse ser longa como um túnel debaixo de uma prisão, escavada pelo editor – paciente e dolorosamente – com uma colher, para que possamos sair do lugar onde estamos. A edição está a meio caminho entre a utopia e o pão com margarina servido a um faminto. Há, por tanto, muita margem não só para erros audaciosos, mas para aldrabices, e é uma paisagem que se apresenta hoje cheia de lacraus e vigaristas, desses que não apenas acreditam mas, mais, até se deixam embalar nas próprias lérias. Isto digo-vos eu que, como sabem, me alegro e compadeço tendo-me oferecido para fazer o trabalho sujo, quando todos se enchem e ninguém lava um prato, nem há o mínimo asseio, vejo-me tão desacompanhado, pobre diabo de mim com tantos rabos por esfolar. Os editores emergem entre o desgraçado lote e, põem as gafas como quem veste uma capa, e comportam-se como heróis em ficções ameaçadas, falando como predestinados. Alguns vão editando como quem organiza um coro, numa peça tão gritada e tão mecânica que lembra a cantoria da tabuada, esse eco amolecido que parece ser tudo quanto ficou de uma infância corrompida. Se os mais esforçados vão cultivando um oficio que se quer insustentável, e misturam um insano desprendimento com um impiedoso faro em relação às grandes causas, os outros dedicam-se a acções publicitárias acompanhadas da reivindicação de um prestígio que se acabou. De resto, estão-se nas tintas para os leitores. Mal passam a margarina pela carcaça, e o chá que servem azeda a água. Montam estes serviços de acção social e vão-se safando com ajudas de custo, subsídios de inserção, sacudindo tudo o que haja para aí de entidades culturais. E se um paquiderme se enfia numa ilha e diz que faz livros só porque esgota tinteiros, sabemos como estamos submersos nesta forma de contrafacção literata. “Fazemos livros”, diz-nos o badameco ilhado. E acrescenta: “Não fazemos objectos para nutrir aqueles que apenas se servem dos livros para inchar egos e panças.” Mas é precisamente esse o modelo de negócio: egos & panças. E depois ajuda ter certas características, como baixeza, cobiça, temperamento de chacal. Este tem sido o signo de uma geração que já se sabe perdida e, ao invés de se rebelar no interior dessa angústia, distinguindo obras singularíssimas, que encorajem o leitor a comprar cada vez menos livros, a percorrer as galerias escavadas à colher debaixo desta prisão com uma vela junto ao peito, antes contribui para que fiquemos encarcerados entre estas muralhas de lixo a que, desde há algumas décadas, vieram juntar-se os livros. Com toda a sua estéril agitação, a acção destes editores é menos corrosiva do que é complacente, e não faz mais do que cantar a tabuada. Ao mesmo tempo desarmada e prevaricadora, é uma acção que se faz valer de uma ideia do livro que ela mesma desonra, e todos esses editores que se dizem independentes são piores do que os outros. Se estes são meros jagunços que servem a inclinação, já aqueles são os tarados deste inferno degenerado a que só restam formas de pequeno poder burocrático, e que se fazem valer de certos ideais já bastante maltratados, para se tornarem controladores do tráfego do ego, esse tráfego rastejante que paga portagem sob a forma de bajulação.

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