segunda-feira, agosto 19, 2019

Querem um debate alargado?


Os poetas têm infortúnios muito seus, parece que caem por uns buracos que se abrem especialmente para eles. Depois é ver os cartazes afixados lugubremente pela cidade: desaparecido este no mês de tantos, àquele ninguém põe os olhos em cima faz anos, e os respeitáveis que ainda restam vivem fugidos, e, como aparições, pôr-lhes em cima os olhos é já notícia. Alguns distraem-se como podem da selvagem parolice e da praga de literatos espremendo o pus dos seus abcessos, vão "remexendo baldadamente nas cinzas geladas do Além", mas nisto, e até com a melhor das intenções, serve-se a oportunidade, nesta época carnavalesca, para o triunfo do pendor folclórico, e logo vem por aí o desfile dos xéxés babando sobre a memória, os soturnos sobreviventes, dando-se ares, a riscar tudo e recompor, em golpes de revisionismo em que assumem grandes protagonismos por terem guardado as migalhas que caíam da grande mesa. E, nos últimos tempos, tão chocha e desanimadora anda a coisa que se ganhou o hábito, seja truque retórico ou tique nervoso, de coçar o desgosto clamando por um debate. Venha daí essa razão controvertida, vá, como que uma insurgência das tropas na reserva, essas milícias ociosas... Só que, mal o debate é proposto, logo se vê uns pegar nas próprias fezes, e o tipo que o exigia arrepende-se quase de imediato da sua lírica entoação. Constata que o silêncio tem, afinal, uma danada razão de ser. Porque nesta terra ou se está a uma mesa com um número reservado de cadeiras à volta, e quem mastiga consegue organizar umas ideias sem estar a cuspir no prato do da frente ou do lado, ou a posição geralmente assumida é ficar de quatro, afocinhando na manjedoura. Não há grande conversa ali, mas a confusa deglutição de uma rançosa mistela farta brutos, e não se trocam informações nem noções mais profundas sobre nada. É a ceva para a fulanada, uma engorda das hipóteses que julgam ter. Assim, conspira-se fátua e inutilmente, acirram-se ódios, elevando o lume no tacho onde se adensa aquela sopa que empanturra e emburrece os estômagos. Qualquer discussão só amesquinha essa consciência minimamente dramática que cada um entretém, de si para si, nas suas ruminações. Falar alto, com verdadeiro empenho, e mesmo por escrito, é um acto masoquista. Os ecos gelam-nos. Tudo só piora a desolação. Por isso, sobre os poetas e a sua natural propensão para o sumiço, para desastres que tardam em explicar-se, só resta saudar que o destino continue a preservá-los das honrarias terrenas, dessas atenções em tudo frívolas, e de se verem festejados em tristíssimas orgias. Contando que não esteja por uma unha negra, com a exalação da morte a cercá-lo, a despertar a larica nos vermes, o poeta dá-se melhor ficando na sua, e afina mais seu canto raspando a voz na pedra das contrariedades. E depois, até o mais galaró, logo se farta desses mimos grosseiros e furta-se ao castigo de ter de se misturar, emprestar-se à ladainha dessa caterva de egos leprosos. Comece-se pelo que vai aí de raro talento abespinhado e que se pisga para não acabar na promoção pague um, leve quantos quiser dessa malta medíocre. Veja-se como se ergueu essa igreja para os desamparados das letras, onde algum pároco gemebundo dá a sua missa num atropelo de crendices e patacoadas, armado em milagreiro, a fazer bailar e saracotearem os comichosos fingidores que vêm à esmola e se ficam pelos fundos a roer os próprios ossos. E tudo isto em nome do quê? Pois de Nossa Senhora da Inspiração, é claro. Só no meio literato é que todo o pelintra dá por si a ter visões e vira um místico do real quotidiano, desata a walsar e a esfarelar uma broa prosaica em versinhos. Depois vem reclamar o seu quinhão entre os imortais. Face a isto, todo o crítico é um herege, e a sua palavra sacrílega. Que margem fica, assim, para um debate minimamente sério se o ego se sobrepõe a tudo? A partir do momento em que este serve de esteio e se enreda na obra, os dois partilham um mesmo destino, a afirmação literária torna-se uma questão de sobrevivência. O valor de um texto hoje já parece desejar ser lido menos segundo critérios literários do que à luz da declaração universal dos direitos do homem. Assim, a partir de que ângulo se pode atacá-lo? E se na poesia são mais os que sujam os papéis do que aqueles que os lêem, todo o crítico que se embrenhe com uma faca de mato por essa selva acabará apodado de facínora.

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