quinta-feira, julho 18, 2019

A Guerra dos Condóminos



Dada a evacuação faz já uns anos de tudo o que fossem altos vultos, com o fim das grandes casas senhoriais e de tão dispersos os ermos casinhotos, o problema da habitação no meio literário português acabou reduzido a um imbróglio ao nível da propriedade horizontal, as reuniões de condóminos que, ou não se fazem de todo, e cada um desrespeita os regulamentos como se lembra ou só para chatear, chafurdando ele mesmo para incomodar menos mas um tanto os demais, ou, se há razões superiores, ameaças de novos invasores, lá se reunem as hostes e acaba tudo numa tremenda zaragata. Faz já uns anos que vim viver para uma palhota, e, antes disso, há uns meses que me vinha baldando às cerimónias, missas, quermesses. Lembro-me de certa vez ter dado por mim protagonista de uma circular saída do punho do mais eminente presbítero em característico tom seco e tosco a queixar-se de que este menino fora apanhado a bocejar na última reunião de trabalhos, e que isso era atentatório da dignidade da missão e coiso. Foi mais tarde que vim a descobrir numa fita qualquer que nas salas de interrogatório uma técnica básica ao confrontar um suspeito de actos tenebrosos é interromper-se e hastear bem alto um magnânimo bocejo, até espreguiçando, e isto porque, se é conhecido o efeito contagiante desse gesto-em-cauda-de-cometa, quem sempre fica imune, quem melhor resiste a esses efeitos é o psicopata. Ora, do que me lembro, na sala só houve um dos que lá estavam que abriu a bocarra e lacrimejou um tanto. Talvez o medo tenha levado ainda um ou outro a disfarçar, esconder os destratos que nos causava aquela cegarrega, mas é sempre bom dar por si folgado, rindo de recordações, assim se goza desbragadamente o gosto de andar cá fora, e de, apesar de uma ou outra mazela, se ter saído do Grande Convívio batendo com as sucessivas portas que se me punham pela frente. Da experiência de mais um ou outro que me antecederam nestas coisas, mesmo que de outras gerações, estava já instruído quanto às condenações que haveriam de seguir-se, mas a situação ainda ganha contornos mais hílares se vos disser como, depois de um período de confusões, acabei dando-me conta de que ao sair os trancara lá dentro. E por estes dias, quando nada tenho que fazer, colo os pedaços quebrados do que vou ouvindo e lendo, sei juntar dois e dois... (mesmo se, às vezes, até por maldade, junto um pontinho e dá cinco, não falho por muito) e se as memórias que guardo chegam a parecer-me um tanto delirantes, logo algum fio vem socorrer-me entretecendo-as, e, pelo intricado da deplorável trama, sei que não podia ser coisa toda ela montada lá nos fundos da oficina da imaginação, pois fede demasiado ao tão triste e cultuado real que lhes servia de programa. O que também agradeço são certos estímulos, presentes que me puxam de volta para os braços do passado, e nem escondo o prazer de lá ir quando as horas me não dão outros espinhos onde aguçar o sangue, pilhando-o assim “como uma enorme rosa em estado de decomposição”. Gosto sempre de me mirar nessa janela empoeirada e ver do outro lado a família a molhar o pão resseco na mesma sopa d’antes. Vez por outra ainda me chegam estilhaços, alguma homenagem por meio de referências cifradas, um retrato aplicado de quem, noutras circunstâncias, me fugiria como as galinhas fazem, armando um berreiro até desaparecerem deixando só as penas, e então lá me obrigam a abrir um tanto ao calhas o canhenho marcial, soprar umas aparas, e ir cheirar o catálogo a ver se me lembro... ah pois, este – diz que é rijote, que é cheio de talento naquelas unhas, um pouco atarantado, da ideia de flanar só lhe ficou a flanela, ou aquela ali, sempre a urdir a sua apertada teia, ensarilhar nas sombras, sabe como ninguém do crochet, tão aplicada nas variações entre essas notas ora doces, ora severas ou melífluas, numa de eterna governanta como as formava o lazarento país do Salazar e da Nossa Senhora, e parece que ainda faz suas malhinhas por escrito sempre que se apanha em trânsito, de resto, e à volta, há os que entoam uns rosnidos em coro, com um ou outro tenor a destacar-se, mostrando a dentuça, e entre labirínticas demandas, versinhos achacados, violências entredentes, sentam-se a assistir ao filme da sua posteridade, mas se passa alguém pela rua e olha, amatilham-se a ver se causam impressão, a dar a ideia de que, se for preciso, afinfam, infelizmente, depois não há um que se faça, ferre o dente. São demasiados colos, e quando aquele além se empina é para mostrar aos outros o que faria na hora, mas chega a hora e cisca os cantos. Quanto aos restantes felinos desesperados, ao que sei ainda se presta culto àquele que ganhou fama como "o gato mais colérico da sua geração", o que revelou como, no fundo, estávamos mesmo era na presença de ratos. E o tempo vai passando, a tão cortejada morte vai chegando por fascículos, os alvos comuns e as raivinhas que em tempos os uniam estão aí como dantes, peruando, e, na verdade, cada vez mais se lhes assemelham. Nem com o ânimo reunido a muitas mãos lá nas reuniões clandestinas da célula celeste, em salas forradas a murmúrios, puetices, bustos de algibeira, e com as letras gordas das graves frases motivacionais em modo de requebro lírico, nem com tudo isso se deixam arrastar para a coragem dum ataque. Entre roncos, suspiros, bater de pés, remexer de nádegas sentadas, etc., gastam-se nessas actuações, numa espécie de concerto minimalista, perpétuo e que (julgam eles) bem merecia ser gravado, deixado aos vindouros... Assim, tentando retribuir o favor, espero homenageá-los se disser que me lembram os amorosos melancólicos, envaidecidos das sombras tantalizadoras que deitam com a luz certa, e como sei que o apreciam, dou-lhes do Camões um eco, vindo do passado, para admirá-los nessa permanência dos que nunca morrem porque são logo substituídos por outros: "Estes, no andar, carregam as pernas para fora, torcem os sapatos para dentro, trazem sempre Boscão na manga, falam pouco e tudo saudades, enfadonhos na conversação pelo que cumpre à gravidade do amor. Nestes fazem as alcoviteiras seus ofícios, como são: palavras doces, esperanças longas, recados falsos. Hoje vos falam pela greta da porta: como vos não falou 'estava mal disposta', 'sentiu-a sua mãe'. Porque esta é a isca com que Celestina apanhava las cien monedas a Calisto."

1 comentário:

victor disse...

Caríssimo e muito lido (por mim, já nos 70 em número que se multiplicado por meses, ou semanas dá maiores algarismos - sem, porém, alcançar a faixa dos GRANDES Nºs, esses com propriedades ultra Pascalianas e superjesuiticas - |não encontro o parêntesis recto, vai este parêntesis originaal em forma de uma barra...outra barra| - o problema agora é de encaixar os parêntesis uns nos outros em lógica de mil andares, como a casa, sem piada ao Cervantes /grande admirador do Camões e, sem sequer dar sinais de invejar/ "Desisto de encaixar e continuo"---

Como é que com tecla alguém pode estar à espera de sobreviver sem se meter na Grande Conferência do Caroço!? Alusão ao César dos Vais e vens...Excluindo, "claro" o cavaleiro "branco" dos produtos franco-lunáticos e sucessores globais (mas recordando o AJAX, o dito cavaleiro detergente dos tempos pós TIDE da filha da cochinha (antes das novelas brazucas e pórtúguêzais, tipo Camilo e Diniz, mas com fita TV, magnética ou mais, ou mais...

Desencaixei-me outra vez, prometo que é a derradeira. Para então acabar. Se uma foto de um benoliel valia mil imagens (ou uma ilustração R. Gameiro valia dez ou coisa assim), quanto é que não vale uma sequência em movimento? E muitas destas e a cores? E mais ainda em câmeras de Hitchcocks ou de telefone IPHONE ou quejandos? E se a imagem for animada ou parada e completamente fabricada por uma start-up de imagem artificial? São números realmente des-co-munais- a exigir uma tal matemática muito além da pascaliana dos tais Grande Nºs...(eu proponho que se chame a Matemática dos Imensos Algarismos (IA, 2ªa via)...

A conferência dos pássaros do tal caroço reune-se provavelmente na bacia do Tejo e do Sado, de acordo com as migrações das aves através do Terra-verso (uma componente inversa do Uni-verso)...Isto é: Uni-Verso, é a única alternativa para bater o caroço e continuar com ele como diz na sua letra o NÓbÉl Bob Zimerman (parente afastado do Bloomberg e do Zucaberg). You Can Have Your Cake and Eat It Too. Mas cake ou cookie não é bem Caroço - esse é mais para o tal dos vains e vens e que já se foi.

A passarada do bocejo onde vão chovendo grãezinhos de mostardinha por cada terrível maldadezinha real ou imaginária, essa conta mas só sabe a matemática desde o tempo da batalha de São Mamede...Onde é que isso já vai (e não vem, e já se foi de vez).

Admiro a coragem intrépida que vou lendo neste I que descende do Jornal Novo e Século recuperado e apagado e assim...Mas realmente a única história do jornalismo que interessa é a da passagem em dois séculos da GAZETA (uma moeda tipo cêntimo) de cordel para o Jornal Electrónico da República em 2 séculos...Ah, é a demo-cracia...É o demo com letra minúscula para passar despercebido...É o demo, é o demo (o bicho, o bicho dos bons tempos em que o espaço tinha um centro que caçava - gambozinos).

O jornalismo dos DN com e sem A, dos séculos sem Igreja, dos blogs dos FBóBó, é tudo fogo de artifício chinês a comemorar a viagem à Lua muito depois da do hergé e sem capitão Rosa ou Haddock)

Cá fica o meu vetusto apreço e tardio acto de aprender com quem realmente sabe, sabia e saberá. E quem não for como as criancinhas não passa para a República dos Céus, dos Anos, dos Meses, das Semanas...AMEN.

Um bom dia-a-dia fortemente

Victor (a ler Mário de Andrade, do Brásiú)