sábado, fevereiro 02, 2019

Ácido e Peçonha


Nada como uma acusação tão imprecisa como preguiçosa metida num baralho só com figurões, traficada de forma ronceira a meio de um parecer nalguma matéria de especialidade, nem sequer injusta, apenas como uma jarra de plástico sobre um móvel em mogno maciço, levantar questões de sintaxe, dessas que mais importam a um curador de museu de província, entre o que concluíram os outros, resumindo como quem se acha e toma balanço, e de seu faz um enxerto jocoso nas aulas de biologia, a ver se pega, e isto sente-se, logo de manhã, como se uma chuva tépida caísse nas planícies do sangue, temos assim uma aula em volta de coisas que sim senhor, e pondo a boca numa plantação de canas esse vento assanhado dos argumentos de género, em que já não se dá margem para oposições, para fantasias lúbricas ou não, as divisões canalhas só a ver se a imaginação infunde no mundo algo menos orgânico, se de um útero nasce bem longe da árvore genealógica um animal extremo, capaz de ir de um ao outro sexo, como quem arrombasse os quartos, e fosse sempre de noite, apanhasse todos dormindo, porque resulta claro como não há outra tão assombrosa distância, tão incitante e tectónico abalo quanto o do género, mas se te serve, força, bota aí a dizer que o gajo é misógino, faz-me essa sopa com as pedras todas que tiveres, ou antes deixa-me a mim o avental, deixa que eu ta faço com maior gosto, e te mostro a lascívia na inversão dos papéis, só não me peças que te ponha a correr um banho maria, nem que me fique a passar a roupa tão sossegado, a um canto da cozinha, a tecer recados entre apontamentos colhidos no cesto de fruta da academia, nesse raquitismo barroco, deixa que te frite um ovo enquanto passo as camisas, mas em vez da televisão ligada, ou Bach, não te incomodem os urros, ou que escarre nos vasos, ligue o gato pela cauda à ficha, lhe desenhe a anatomia como nos desenhos animados, espiando-lhe os ossos por meio de choques, ou que me ponha a depenar os teus pomposos cisnes, prepará-los para o tacho, ainda te como as ameixas que tinhas guardado no frio, e mesmo que nem estejam tão doces ou sequer frescas, enterro-te o caroço o mais fundo, seja no peito, seja nalgum sonho que te apanhe a meio, e se vingar, por entre os cuidados que lhe dediques, o natural é que também ele mude de género, se transforme num pequeno cato de espantar a solidão na varanda... É como dizes, destrói-se, decompõe-se, mas se me levasses a sair, o desabafo talvez fosse torto por essas tão direitas linhas: antes fôssemos mais infiéis, e até a beleza se indignasse, quisesse saber o que temos nós duas, tão desejadas, tão feias, menos tristes, talvez, menos mãozinhas num baraço sobre o colo, e quantos estalos nos dessem até se diria que os comemos, como bagos, explodindo ao ouvido uma da outra, e, sobretudo, sem nos apoiarmos em teorias, enquadramentos gerais, peixe cozido e grelos, dietas de reformatório e demais subsídios de inserção, nada, e sim, leríamos vísceras com ácido e peçonha, como quem segue os movimentos aos bandos nos céus, a formação quase militar, e depois o caos, se um milhafre desce entre os estorninhos, como um tempero revoltando o gosto da sopa, e para chegarmos a tanto, bem creio, já só me falta ser mulher, é afinal o argumento que sobra, pois se me falas em violação, lasciva adulteração, eu, dessa pobre coisa que é ser um homem, de olhar-vos daqui estou cheio, não me dá para fantasias, perdoa, nem invasões, dá descanso a essa da penetração, pois faz já um bom tempo que disse que até o amor trocaria por miúdos desses que preferem bater à punheta, mil perdões, ó flor, carnívora ou não, prefiras carne ou peixe, ou mesmo rebentos de soja, não puxes tu do falo nem assopres nele como a uma trombeta, não venhas tu vislumbrar uns pingando de belicismo, nunca tive menos medo de me apaixonar por um homem do que por uma mulher, nem nunca criei complicações em razão dos buracos, no limite, ainda pensei que, se necessário, abre-se um, mas não concebo paz sem guerra, como não desejo senão força ao meu rival, e que me eleve, me subjugue numa hora, para que renasça do que reste vivo entre as cinzas na seguinte, pois dizes que não bato, que reajo, nem tenho lança, apenas uma faca romba, tu lá sabes, e eu confio, até me lembro de te ter dito que mesmo que quebrasse por todos os lados, como finges, como vidro, e me manejasses como fragmentos, cortando ou não as mãos, nesses reflexos dilacerados que te roubasse, do mínimo que me dês, lanço correias, contorno a estaca, de um pneu furado faço um baloiço, e mesmo que só essa vilania menor me concedas, por mim está mais que bom: ácido e peçonha... pois seja, e parece-me bem, ainda que não fosse este o tempo ou o lugar apropriado. Infelizmente (e daqui não saímos), é.

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