quinta-feira, outubro 25, 2018



Não deixa de ser recompensador ir catando amiúde esses reflexos desavindos que de nós se vão separando, e sacam papéis de vilão nas novelas de uma só nota e samba nenhum que servem de sustento às lamúrias suplicantes do género de descerebrado que tem a candura de vir partilhar como aos quarenta chegou ao texto crítico de Julien Gracq, "A Literatura no Estômago", e como, perante tão poderosa denúncia da podridão do meio literário francês (ainda assim um exuberante zoo quando comparado com a gaiola de rolas e canários atafulhados no que é o nosso), depois de lidas as primeiras páginas, o comentário lacónico que este monumento incendiário lhe provoca é uma pedrita lançada a esta janela. É assim que o Domingos, com aquele português de cabeleireira, aceita o close-up para levantar das ancas as mãos e deitá-las à cara, exclamando ah, então não me queres ver que o sabujo do i me veio beber inspiração para a sua sanha aqui ao Gracq! Mas se me medalha notando o eco deste autor, logo adianta que este se esfalfa em modo de cacarejo. Seria até surpreendente que se desse conta de quanto tudo o que o ultrapassa, defensivamente, é entendido na escala de um som primário, e isto para não ofender tão secundária consciência das coisas. Seja como for, é a homenagem possível, e uma que aceito em nome do furor com que cheguei, algures pelos vinte, ao dito texto, a que espero voltar algumas vezes mais, sendo sempre um exercício para esticar as pernas, espreitar um catálogo mais vasto do que o nosso pobre chiqueiro, uma terra média onde os orcs ainda obrigam a uma certa dose de heroísmo da parte de quem se lhes opõe, ao contrário dos nossos trogloditas acobardados, grunhindo um desconforto sem mais argumentos do que aquela irritação diante da vilania do personagem que mais faz por estragar a grande festa que, com invejoso comedimento, também eles olham de lado. Subjacente a tais acessos de urticária, está a pretensão destas lânguidas penas de publicarem fosse o que fosse, esperando que todo o juízo crítico se suspendesse para que a sopa dos pobres-egos pudesse instalar-se no centro do espaço literário. Sirva a ocasião para relembrar as palavras de Ernesto Sampaio (o tradutor daquele panfleto) quando diz que para Gracq "não há razão de ser para a literatura congelada e cinzenta: o escritor, seguindo o terrível conselho de Céline, deve calar-se 'quando já não tem em si música suficiente para fazer dançar a vida...'." Ora, basta ir descendo pelas entradas daquele blogue para nos darmos conta do quanto este se parece com a arca frigorífica de um triste salsicheiro que, ao sangue pisado dos seus dias, junta uma emulsão de carnes de animais de outro porte e dignidade, fazendo passar por vagido existencial o seu estertor com veleidades estéticas.

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