sábado, outubro 27, 2018

Barricadas de feira


Il y a la culture qui est de la règle, il ya l’exception qui est de l’art. (...) Il est de la règle que vouloir la mort de l’exception. 

Jean-Luc Godard


Reparem na citação, firme, aí à cabeça, como um chapéu de coco com o furo de uma bala e um buraquinho fumegante, chapéu que se levanta à passagem dos curiosos num gesto malandro de cumprimento. Fanei-a de um texto todo abotoadinho, desses que querem fugir da academia mas que, com aquela ânsia toda, se trancam na despensa. Já lá iremos. Por agora, fixemo-nos nisto: está a decorrer este fim-de-semana a primeira edição da Feira Gráfica, e a coisa diz que é um “evento” e que “procura juntar no espaço do Mercado de Santa Clara, em Lisboa, várias iniciativas micro-editoriais, de diferentes pontos do país, ligadas ao livro (de literatura, ilustração, fotografia) mas também a outros universos da tão vibrante intervenção criativa contemporânea constituídos por revistas/jornais culturais e/ou publicações de autor como as fanzines ou impressões de diverso tipo (em serigrafia, gravura, risografia, etc.)”. É a costumeira sufixação desses modos de resistência prezáveis e que se compensam pavoneando-se como excepção enquanto vão faltando os meios para uma verdadeira projecção cultural. É-nos lembrado que, além da “venda propriamente dita das publicações”, não falta também um programa com lançamentos, conversas, concertos... O de sempre. "E se são muitos – como lembrava Emanuel Cameira, um dos organizadores – os que actualmente fazem do livro um comércio igual aos outros”, depois outros há que se movem à margem disso, até nos "antípodas”, como foi o caso da “heterodoxa & etc”, que foi um modo de “poesia em acto, ‘nas escassas poças de vida que restam’ (Epstein, 1963: 63).” E se Cameira exaltava o exemplo do “abnegado editor” que Vitor Silva Tavares foi, impelido “pela ética missão de editar o livro necessário”, vale a pena também lembrar quando, faz já mais de duas décadas, VST se atreveu a lançar uma moeda à fonte, desejando em voz alta: “estou à espera que a rapaziada nova ponha cá fora algo com o mesmo tipo de vontade de intervenção crítica que existiu na & etc. As condições actuais de treva cultural são mais do que propícias para isso”. E nisto, deve poder dizer-se que estamos todos à espera, e alguns mesmo inquietos, empenhados nisso e actuantes. Mas depois, paralela à noção da cultura de massas como um “instrumento de repressão e não de sublimação”, pode falar-se também de uma torpe tropa enflorada, uns seguranças da intervenção criativa independente que, em nome da pureza da causa, pedem apoios públicos, e logo, não apenas fazem a festa como, pela via da exclusão, determinam quem merece estar e quem não, tornando-se os carrascos de certos ecos. E passo a explicar: Ora, este senhor Cameira determinou que havia espaço para tudo o que fosse projecto editorial desnalgado, menos, é claro, para nós. Na hora em que se determinou que um dos livreiros representaria várias editoras, entre elas a Língua Morta, aí houve um pólen que se instalou nas narinas do rapaz tão evidentemente empenhado em fazer a sua parte para aplicar uns furos na “indústria da cultura”, e logo torceu o nariz. Explicou que infelizmente já eram demais as editoras. Que para as outras ainda dava, mas para esta não. É a tão vibrante intervenção criativa contemporânea que, naturalmente, abalroou a Língua Morta, atirando-a pela borda fora. Um azar do caraças foi o que tivemos. Ou isso ou então já lá estava uma bala com o nosso nome. Pois, é que esse é o outro lado de que se fala menos nestas coisas, o modo como entre a piolharia dos literatiços, os bosquejadores e ratos de pincel na mão, os fazedores de livrinhos, panfletos, tretas, a horda que se entretem entre o roer ou não roer a corda (eis a questão!), damos nós com uma gente muito arregaçada das mangas e que vai dos braços ao juízo, e que se lembra de vir com exclusões a brincar aos Estalines, aos apagamentos sumários. Penalizar todo um catálogo, uma série de autores, em nome de quê? Que mesquinhez... E eu ainda m'espanto, depois dá-me para rir de tudo. Se, por um lado, arreganham muito a dentuça ao grande capital e aos grupos virados para o homem-massa, depois onde vêm dar as mordidas é naqueles que não fazem a Oh-Posição nem marcham como manda o livro de regras deles. E então logo se vê como concebem o esquema contra-cultura como uma festinha de anos: só convido quem eu quero, quem faz anos sou eu! E façam, muitos anos, e que se enterrem de tanto auto-agraciamento, mas que se lembrem de vir boicotar uma editora, excluir uma entre tantas? (A lista é tão longa que seria um disparate reproduzi-la aqui.) E não é que não nos agrade, como noutra ocasião já fizemos notar, o vermo-nos excluídos à partida do rol de distintos marginais. Nem temos muito a coisa de ir às festas de anos, mas é só uma certa apreensão e lástima que nos causa ver que, ao invés da crítica, do ataque directo, vem este alfinete debaixo das mesas, a parolice persecutória de certos actores independentes embiocados e que não resistem a exercer o seu pequeno poder burocrático. Até nos honra sermos lançados borda fora e ficarmos logo à parte desse grupelho de “ratazanas de nau engalanada”. Mas a questão é: para quê tais honrarias? Para quê estas barricadas de feira, estes que se pintam como índios mas, depois, actuam como algozes, e de libertários só têm o brinco e a pose. Uma vez mais, reafirmamos que é uma alegria não ter já perna para os tantos que se atiram a ela a tentar meter o dentinho, mas sempre seria bom ouvir explicações do senhor Emanuel Cameira, que a última vez que se nos dirigiu foi para perguntar se não lhe dispensávamos uns livros por nós editados porque ele estava mal de massas (e não estamos todos?). Não lhe respondemos. Talvez tenha isso sido o bastante para provocar estas atenções especiais. Seria bom receber algum eco, mesmo que uma tapona bem dada aqui nestas nossas fuças. Infelizmente, já começamos a duvidar de que desta rapaziada nova venha mais que a snobeira do seu silêncio, do: “não me rebaixo ao nível deles”. Ai esse Céu na Terra, com toda a sua presunção e água benta, está-se a transformar numa terrível praga e numa condenação à morte da crítica, que é coisa que a esta nova geração de “independentes” deve parecer muito démodé. Mas aqui fica o desafio: será que é desta que vem de Cameira, insigne editor das “Postas de Pescada”, uma lição aqui para a borralheira? Pode ser que seja desta, já que das outras tem sido sempre difícil assacar-lhe uma proposição destemida que não balance entre as aspas ou fique a roçar-se até à indistinção nas palavras de outros, lavradas com outro alcance (é o caso do texto a que pertence a citação que vem à cabeça deste e que integra o livro-homenagem “& etc. Uma editora no subterrâneo”, ed. Letra Livre). No fundo, e para alguém que nos deixa entrever o seu quarto de adolescente forrado de posters com as fuças heróicas de astutos sacanas e sumidades da crítica cultural, e também das frases destacadas ao molde de slogans, é curioso achá-lo depois de gatas, a avançar timidamente, no meio da gente, misturando tudo, numa confusão tal que, no fim, nada se tem de pé.

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