O pouco cuidado com os poetas que mais seriamente encaram o seu trabalho diz-nos tudo o que precisamos de saber quanto à situação da poesia portuguesa contemporânea. Na lista dos ignorados, quando não mesmo silenciados, a par dos inúmeros casos negligenciáveis, constam alguns desses que, no desalinho da tradição, nos lembram que a poesia é uma das mais elevadas formas da crítica, aquela que submete a linguagem aos maiores destratos para o reforço da língua, estômago que repetidamente digere e vomita o mundo, para compreendê-lo e alargá-lo, participar na sua constante transformação. Alguns poetas (poucos) aí estão, pagando diariamente a renda por um quarto de servente na torre da canção, e são estes os que mais facilmente (e a contragosto) se vêem postos à margem. Tanto empenho quanto a sua intervenção lhes exija, arando até à demência uma terra que protege com as unhas e os dentes dos seus medíocres agentes culturais a sua infertilidade, todo esse esforço, e até o andar à bulha com porcos, é o exacto preço que se paga por se ser poeta neste país. E por isso deve ressalvar-se esta homenagem de Valter Hugo Mãe a Zetho Cunha Gonçalves, sendo que, como aquele diz, seja enquanto poeta, seja como editor, estudioso e divulgador, aos 58 anos, a sua participação no teatro da literatura em português tem mostrado ser hoje imprescindível. E destaque-se aqui também a ideia de teatro, quando a larga maioria dos literatos vestem a gabardine dos intocáveis ao invés de estarem comprometidos com a dimensão performática que deveria fazer deles actores num espaço que, não apenas não acompanha a obediência aos consumos, mas rompe com ela, quebra, estilhaça, devolvendo em labirinto os reflexos que do mundo usa, trabalhando a crítica pela via da invenção, envergonhando a soberba dos contentinhos e aguilhoando a audácia dos insatisfeitos.
Noite acima
Saiu em 2017, na Língua Morta, a antologia avara de Zetho Cunha Gonçalves, "Noite Vertical". Digo avara porque é uma rarefacção de uma obra já de si escassa, uma escolha de pouco de entre algo que nunca foi abundante, nunca foi demasiado. A poesia é um juízo que propende para o silêncio, e esta antologia não deixa de ser um aceno ao silêncio, um certo abuso consciente porque, se o ruído é leviano, a leviandade é condição sine qua non de existir.
A figura de Zetho Cunha Gonçalves é ímpar e julgo que chega agora a uma participação imprescindível no teatro da literatura em português. Os volumes que tem organizado para a Antígona ("Fernando Pessoa - Um retrato fora da arca" e "Notícia do maior escândalo erótico-sexual do Sec. XX em Portugal"), garimpando textos de inscrição histórica que, as mais das vezes, se viram perdidos, não lidos, treslidos, mal editados ou censurados de alguma maneira pelos costumes ou pela ignorância, abrem pistas para detalhar, por exemplo, Fernando Pessoa de outro modo ou com maior rigor. O seu trabalho tem algo de súbita resistência contra a massificação de ideias pre-concebidas, ideias fáceis ou simplificadas acerca de autores e temas ricos que importam a crise constante, importam a dúvida insanável.
Foi na Lourinhã, durante o evento Livros a Oeste, que ouvi o Zetho Cunha Gonçalves a falar. Percebi que se expressa de um modo desabrido, apaixonado, a perder completamente a noção do tempo, não numa gula de aparecer mas numa certa fúria de depurar conceitos, de expor as ideias como essenciais e revolucionárias. Uma certa fúria de testemunhar, isso, sim. Noção clara de que ler e escrever são exercício de seriedade e necessitam da ciência possível acompanhando todas as intuições e sentimentos. Os que estávamos à mesa com ele calámo-nos essencialmente. Não é grave. É excelente quando em alguma oportunidade entendemos que nos aproveita ouvir. Assim, ouvi.
Na Lourinhã pude considerar as afinidades do autor com alguns dos melhores, sua aproximação pessoal num quase pacto de admiração de eminência crítica, de amizade sempre confrontacional. A citação de António Ramos Rosa, Ruy Duarte de Carvalho (esse sublime) ou de Herberto Helder, bastam largamente para aludir a uma grata posição, tanto quanto a uma delicada responsabilidade. Algumas amizades requerem bravura, estas, seguramente, não serviriam aos covardes.
Faltou-me, naquele instante, com toda a evocação e curiosidade, a poesia, ela própria. E eu bem que auscultei alguns amigos presentes, mas ninguém parecia deter mais informação do que eu. Nunca me viera à mão algum livro dos poemas do angolano Zetho Cunha Gonçalves, coisa que agora se tornava uma falha obscena. Sobravam-me nos ouvidos pedaços de versos, palavras, fugazes memórias de leituras em alguma revista, em alguma noite do café Pinguim. Subitamente, era fundamental materializar aquela conversa inteira no ofício do verso, esse primeiro e último assunto. Esse assunto mais importante do que sabermos da vida e mais importante do que suspeitarmos da morte.
Pedindo a uma amiga atenta, explicando que não dormiria em sossego sem um poema que me acudisse ao impacto daquela conversa, recebi às três da manhã, por email, isto de maravilha, com que o autor fecha o rol dos versos contidos em "Noite Vertical": "Tens agora o coração deposto / e em chamas / sobre as crateras e o silêncio do mundo. // Chegarás dançando / à entrada de Deus. / E, apontando / o lado fulminado do peito, / perguntarás: / - Estás contente, Senhor, / com o trabalho que fizeste? // Vejo-te a vasculhar - atento e atónito: / a cegueira vazia / das estantes de Deus. / E nenhum livro ali estará, / nenhum poema / - com seu dom, / sua ponte de precipício e salto, / sua voz de árvore rejubilante - / para te aproximarem ou te levarem pela mão / a uma nova / e cultivada / Amizade. // Saberás, então, / como o tempo do poema e o tempo / da morte / não coincidem no privilégio dos afectos. / Mas quem te dirá / quanto a tua ausência / é agora um rio / de águas para sempre intransponíveis?" (pags. 79 e 80).
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