terça-feira, agosto 07, 2018


Trouxe a minha vida até aqui cansado da morte que escrevem outros. De tanto os ler sinto os ossos marcados por mil dedos. O copo de água escureceu, um ritmo vertebrado surde nos fundos da casa, os sons sacodem-na como a uma floresta, de um livro estalam os galhos, abre-se uma clareira súbita onde um corpo consome a estrela de uma antiga idade. O mundo acorda porque se ouve algo passar, talvez sopre hoje o vento que conheceste primeiro, esses ventos das estórias lidas por vozes perdidas, anciães barbudos descalços que pisam os juncos melodiosos. Caem árvores distantes deixando os frutos derramados para o baile que organizam as abelhas jovens. As perdizes, de novo, levantam-se dos versos. Com o ouvido na erva escutamos as formigas dividirem sobre a terra o peso do coração. Pé ante pé a paisagem move-se como um pequeno circo itinerante. Entre os quartos como por velhos caminhos, a luz acende-se, toca o nervo de certa antiguidade, no corredor dispõem-se pinturas de tal delicadeza que ferem, directas tão pungentes que as proibiram. Estende-se um reflexo doloroso entre corpos, sombras reverberando noutras. Enche os olhos apressadamente e foge de si, as mãos na cara, escondendo tanto o deleite como o terror, cavalgando uma suspeita de loucura. As distâncias põem-se a voar. À hora em que as sombras atravessam os muros, na corda, os lençóis abanam os prédios, o mundo resume-se às distâncias mais sórdidas. Não suporto esta terra firme, cada dia anoitecido em que o silêncio se debate com o canto triste da canalização. Só vejo evoluir o musgo que cresce na sombra da garrafa, o insulto da mosca apalpando-me. Nas mãos a realidade não tem já consistência, lembra a impressão de uma luz que se apaga. Como o índio, testo a minha força em mim mesmo, puxando do poço um grito, uma água que tomou o gosto a tantos séculos. Correspondo-me com esse corpo frio lá em baixo: para duas partes de podridão, uma de eternidade. Nem a boca nem a morte dizem tão fundo aquela dor, mas os olhos tem-nos radiantes de uma terra ao longe. E de imaginá-la, o delírio de um condenado, reúno as suas esperanças, chamo a vida e ela vem.

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