Como se vive a própria voz, se renasce dos papéis onde um homem é a difusa mitologia das suas selvagens migalhas de saber. O sangue fica curto, comovido com as pequenas flores de pó que se erguem pelos cantos. Enche-mo mais; vira o copo, deixa a mosca molhada arrastando-se sobre a página - meu pobre anjo de tantas horas -, o preço a que paguei as minhas tão escolhidas sementes retirado nalgum quarto, nos hotéis com essa estrita penúria calculada, silencioso, como o instrumento de um morto guardado no estojo. À luz de candeeiro, transforma-se-te o rosto, a sede inteira cabe-nos na concha da mão, no pedaço de espelho quebrado em que te fechas, e a noite intensamente de volta, embaciando-o. Todos os dias passam e o que fica senão esta brecha aberta deixando a palavra à míngua para que os ossos ganhem leitura? Talvez o caroço de um fruto inventado de tanto o trazer ao canto da boca possa vingar nesta terra. Escreve-se com as sobras e o que sobrevive consegue-o só se nos escapa. Nos confins da tarde esse poderoso olor, de costas para ti, para mim. Fuma as velhas águias voando baixo de roda do cachimbo uma figura que se confunde com essa infância aproximativa onde vi o mar levantando-se a cavalo e antigas estrelas serem baixadas como cartazes publicitários. Baldios onde um sapato guarda as ovelhas de sombra, na cabeça vivem-me hoje mais descrições do que propriamente memórias, cinzas. Do chão apanho as próprias mãos debaixo de chuva colhendo a sua dispersa lição. Ali, destapado, um frasco de paisagem, num só postal todas aquelas tardes de calor medíocre, formigas avivando contornos onde se derramou a breve idade, a rede deitada no chão arfando e as borboletas como fósforos ardidos ainda coladas ao vestido. Medes o ritmo dos minutos para deixar passar o tempo do mistério, essa luz, a doce putrefacção do sol revirando as cascas do horizonte tantos anos depois. A palavra só é suficiente para ver, no mais, abres os olhos vazios. A roupa interior molhada, desfazendo-te o corpo. Só tens para sonho os detalhes do teu próprio esquecimento.
quarta-feira, agosto 08, 2018
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