quinta-feira, julho 26, 2018


A viagem de que ia chegando, muito aos poucos, farto da luz, subindo sempre mais alguns andares, brigão, não contava puto, às vezes parecia que ia pegar-lhe mas na amurada comovia-se e era como se se perdesse por meses. Procurei-lhe o vento nas camisas, do bolso descosido uns grãos de pólen, cinzas estelares para preparar o cachimbo. Juntava-lhe os papéis, li-os à janela de comboios entre países. Busquei a fidelidade nocturna, o pacto com o diabo e o resto, tive mãos em imensos bolsos, puxei fogo, acendi junto ao rosto de uma vez só mil cigarros, fiz por afastar o coração de uma morte fácil, como os versos, revirando tudo, a matilha caçadora atiçada por meras sugestões, o vento ferido de alguma dessas mortes mágicas. Mais que roubar, pilhei, e se bêbado ainda por reflexo puxo da espada. Das minhas mãos preferidas tirei o lenço, desembrulhei uma cidade de estranho amanhecer, vi paisagens mexer-se vivas fazendo jus às descrições dos grandes romances. Uma luz de beleza doentia entre tremores capazes de soterrar países. Mas nada se alterava, tudo persistia calmo. O pássaro colhido num estertor caía e logo embarcavam as formigas, atravessando a morte como a um rio quase parado. Só as flores da cerejeira passam ainda. A árvore desce de uma altura dulcíssima, as velhas articulações estalando, para estender à terra o seu fruto: sombra segredando em que os seres vêm esconder os próprios ossos. Esta flor-cárcere serviu-me de projecto, jardins iniciando uma língua que dispusesse de ambiente e espaço próprios, e nela as vozes se ouvissem como passos na terra. As sombras vão ficando mais frias quanto mais nos chegávamos, lá onde tinham enterrado o sol. Com o calcanhar podíamos sentir-lhe os ossos, a lâmpada subterrânea entre raízes, os canais floridos. Abro-lhe os cadernos, vejo os estudos das espécies. Como os adolescentes desenhando o que se iam fazer: ofender a luz com indicações precisas cheias de raiva e fantasia, e pelo olho da porta alguém tão longe dali, espreita-os soçobrando na obscuridade. Deitado de costas posso senti-la girar, a Terra inteira. Uns passos só neste quarto e chegam os ecos, dá-se a volta ao mundo. Dentro das mulheres ouvi-os bater, companheiros de viagem. Trocavam tudo com as histórias, até a armadilha com uma rosa e um cordel, fazendo os possíveis para que alguma se apaixonasse por um deles, bastava para contar aos outros e engrandecê-lo juntos. Iam-se a persegui-la como gatos pelos telhados, a lua rindo-se, a rua e a noite cada vez mais fracas enquanto as estrelas lhe desfazem as tranças. Pesam-nos mais que os lábios, mordidos demasiado fundo, vozes perto, chegam da memória lenta, toda ela sem forças. Como uma vela no escuro que busca apalpar-lhes o rosto mas se acaba na repetição de uns nomes suaves, já vizinhos do esquecimento.

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