sexta-feira, maio 11, 2018


a fome tão junto do ouvido e logo
tão chegada à boca que mal respiramos
dormimos mais tarde
em quartos para lá de escuros
e há raros lugares que despertam colando
as partes fundas da memória
como o tendão se enreda nesse tom perdido
das coisas que nos contamos
quando mal se ouve já a terra que vimos
fracos por uma toada que os sons cosem
lentamente, o vento nas árvores
cortes de luz e a queda dos frutos
que outras bocas possam saborear
o ar mudado, afectados da voz ao sangue
as pontas negras dos dedos
e as impressões queimadas por um astro sôfrego
movimentando-se entre elas

de um rastro selvagem aspira o perfume inteiro
o peso justo, o corpo imenso, o luxo
e a morte às mãos de quem?
que admiração terrível, e o remorso
contra mim, contra esta mão perfumada
pelo velho gesto
que um golpe tão curto pudesse ir tão fundo
eu não supunha e agora que a música cresce
e este chão que não me chega, falta-me
o degrau certo, não desço nem subo
pago creio eu o inferno antecipado
soprando estátuas de cinza nas ruas quietas
onde fede a morto
sinto um tremor, as letras movem-se e o vento
parece que as lê como se eu fora cego

há uma dor conhecida de quantos homens
a de ter-se menos que um rosto por cada cem
entre os próprios passos sentir
noutro lugar a harpa
das formas que nascem insistindo
os grandes espaços entre as palavras
emprestam outra sensação às mesmas coisas
outro tempo começa, e nós de fora

derrubássemos mil árvores
e nenhum fruto tocaria mais fundo
esta fome, mas esperámos tanto
e por fim chega uma hora possessa
em que a beleza se despe
deitando-se nua na cama
e do desejo nasce o horror quando
a sua estranha carne se furta ao nosso gesto

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