quinta-feira, abril 19, 2018


A tua vida é grosseira, dorme mal, por aí, o teu espanto é tão inútil, tão desencontrado com as coisas ao teu nível, levamos para cama alguém e o estranho somos nós, o prazer esquiva-se, deixamos o rosto ao lado, sobre o ombro dela, uma mão passando o fio entre os sinais, usamos o desenho do corpo que retraçamos, tornando mais firme o contorno para que se perca com a nossa atenção muito alto, abutres desse encanto, as voltas no ar, um cerco a criar fome, e nisso escapamos a nós próprios, esperando que lhes falte as forças para termos a nossa hora. Uma cama, um prato. Cada gesto, um garfo. A boca entre duas pernas, o gosto consolador como o de falar a própria língua ao fim de meses no estrangeiro. Retomar o calor emotivo das palavras certas. Não me saberia a nada a tua cona em inglês. Mas assim, na praia, despida como uma índia, usando os gestos e a respiração para dizer o que queres, onde, quanto. Temos um preço a pagar pelo desejo, a memória, a demora, o modo como o corpo se torna uma roupa largada uns passos para lá daquela cama, da forma como a boca deixou uma frase a escorrer-te do coiso. Há uma idade para falar de amor, depois deixa de ter interesse. Cada um sabe o que lhe trespassa a solidão, como dos outros lhe basta recortar um instante, ficar até tarde, cozinhando finais alternativos. Entre dois perde-se tanta coisa, e por isso vamos contando a outros, dentro de nós, esquecendo-nos de nós, da primeira vez que as baixaste, da última, da melhor, da pior, até ser indiferente fechar os olhos, ir buscá-la ou assistir a um porno.

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